Hit dos anos 2000, calça baixa reaparece e põe ditadura da magreza em foco
Britney Spears com 20 e poucos anos, ostentando um piercing no umbigo e uma calça cujo cós era tão pequeno que dava para ver a tatuagem que a cantora tem na virilha. Se existe imagem que representa mais a moda dos anos 2000, não conhecemos. A artista era quem ditava o que seria tendência naquela época e uma delas foi a famigerada calça de cintura baixa. A peça foi um hit absoluto do começo do século 21 e está ensaiando um retorno, como foi visto no desfile do Verão 2020 de Versace e no look do dia de famosas como Bella Hadid e Emily Ratajkowski. E essa volta, veja bem, está causando calafrios em muita gente.
A arquiteta Bianca Sarmento, 27, de São Paulo, é uma das mulheres que não estão nada felizes com a volta do modelo de calça. "Eu sempre fui gorda e usei a peça durante anos. Era o que tinha na época, era bem difícil encontrar outro modelo de jeans e eu queria estar na moda", conta.
Ela afirma que acabou ficando com o corpo deformado. "Foi criada uma faixa de gordura localizada logo acima do meu cóccix. Acaba com a minha autoestima." A jornalista Micheli Nunes, 32, de Goiânia, por sua vez, lembra que as calças de cintura baixa pareciam ter sido feitas para modelos "magérrimas". "Não podia ter 'pneuzinho', era muito mal visto." Ela se sentia presa em uma armadilha. "Tinha uma calça com a qual eu não podia sentar, porque mostrava a calcinha."
Para Denise Bernuzzi de Sant'anna, professora de história da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica) e autora do livro "Gordo, magros e obesos - A história do peso no Brasil" (2016), o motivo de tanto receio é facilmente justificável. "É o tipo de roupa que fica bem em apenas 1% das pessoas", fala a pesquisadora. "E estamos em um momento em que as pessoas têm percebido que não devem caber nas roupas, mas as roupas que devem atender aos corpos das pessoas."
Assim, o retorno da calça de cintura baixa surge num momento em que as mulheres têm procurado reconstruir o debate sobre moda e autoimagem. "A peça sugere que o que vem acima dela seja rigorosamente chapado, incluindo as laterais do corpo. É uma moda muito cruel."
"Veste a calça saint-tropez, deixa o umbiguinho de fora"
O contexto em que a calça de cintura baixa surgiu traz à tona a discussão sobre a ditadura da magreza. Isto porque, muito antes da música "Cumade e Cumpade", de Leandro e Leonardo, a primeira versão da peça aparece na década de 1960, com o nome saint-tropez. Na época, o corpo "esquelético" começava a se tornar um padrão.
"Com a modelo Twiggy, surgem as ninfetas de 12, 13 anos. Nos anos 1970 e 1980, temos as fábricas de supermodels, que eram, em sua maioria, adolescentes. Portanto, o corpo sexy era o de uma menina, sem curvas. Era quase uma pedofilia estética", diz Denise Bernuzzi de Sant'anna.
O fato de que roupas sob medida se tornaram obsoletas também contribuiu para que a população ficasse de olho na balança. "Antes, quem sabia as suas medidas era a costureira. Com as lojas de departamento, temos que caber nos tamanhos disponíveis", explica a pesquisadora. Porém, por mais que ser gordo fosse mal visto até então, a patologização da gordura surgiu em 1985, diz a historiadora, quando o conceito de obesidade mórbida ganha popularidade. "A grande mídia começa a noticiar patologias relacionadas ao excesso de peso. Assim, a atenção ao corpo ganha força e vira foco", complementa.
Ao longo dos anos 1990, o que predominou foi o "heroin chic", estética representada por modelos como Kate Moss, cuja magreza era quase doentia.
De acordo com Silvana Holzmeister, professora do curso de moda da Faculdade Belas Artes, de São Paulo e autora do livro "O Estranho na Moda" (2010), as calças de cintura extremamente baixa retornam pela segunda vez neste contexto de modelos magérrimas, no fim da mesma década. "As peças aparecem, inicialmente, na passarela de Alexander McQueen, em 1996. Eram chamadas de bumster, trocadilho com a palavra bumbum em inglês", afirma. Da passarela, elas foram parar nos tapetes vermelhos e nos clipes da MTV, em corpos de famosas como Christina Aguilera e Paris Hilton.
Escravo da moda
Os jeans como os de Britney Spears no clipe de "I'm a Slave For You", de 2001, foram hegemonia até, segundo Silvana, 2006, quando as calças de cintura mais alta ganham espaço. A professora da Faculdade Belas Artes aponta que, pela moda estar com os olhos voltados para a estética dos anos 2000, o cós baixo deve, sim, ganhar mais destaque.
Porém, esse histórico restritivo é o que faz garotas como Micheli e Bianca levarem um susto ao ver Kendall Jenner desfilando com o umbigo de fora em pleno 2019. "Caso essas calças realmente voltem, eu não as usaria de novo. Até porque nem teriam para o meu tamanho. Além disso, lembro que era extremamente desconfortável e promovia um ideal de corpo não saudável", fala Micheli.
Há quem seja mais otimista e entenda que o cenário é muito diferente do início dos anos 2000. A comunicadora e criadora da feira Pop Plus Flávia Durante, 42, percebe que, mesmo que o cós pequeno bombe, terá espaço para pessoas de todos os tamanhos experimentarem o look. "As mulheres estão mais conscientes, o panorama mudou. Agora adaptamos tendências ao seu corpo e estilo, não acredito em limitação", afirma a militante.
Silvana Holzmeister adianta, no entanto, que a cintura alta não deve sair de cena tão cedo. "Ela foi desfilada no Verão 2020 de Alexander McQueen e Givenchy, o que indica que as duas opções terão espaço nas araras."
Ainda assim, Denise Bernuzzi de Sant'anna acredita que a melhor forma de lidar com o retorno do cós baixo é mudar o nosso foco. "As pessoas, sem dúvida, devem cuidar da saúde, mas não podem fazer disso o seu modo de vida. O corpo não é a finalidade, mas é por causa dele que estamos vivos."
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