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Preta-Rara dá voz a domésticas em livro: "É resultado da escravidão"

Preta-Rara - Iwi Onodera/UOL
Preta-Rara Imagem: Iwi Onodera/UOL

Nathália Geraldo

De Universa

03/10/2019 04h00

"Eu, empregada doméstica" surgiu como uma página de Facebook criada pela historiadora e rapper Preta-Rara, 34 anos, com base em suas próprias experiências enquanto — em vez de produtora de conteúdo, profissão que a define hoje — ia limpar a casa de outras pessoas. Em tom de desabafo, ela escreveu na rede social situações vividas com os empregadores que, em sua opinião, faziam do quartinho de empregada uma extensão histórica das senzalas do tempo da escravidão brasileira.

Depois de dois anos recebendo relatos antigos e atuais de quem também ocupava a função, a historiadora lança o livro "Eu, empregada doméstica: a senzala moderna é o quartinho de empregada". São 212 páginas de depoimentos sobre a profissão. Alguns deles são de sua avó, Noemia Caetano Fernandes, e de sua mãe, Maria Helena da Silva Fernandes, que também exerceram a profissão.

O fato de três gerações de mulheres negras terem sido levadas a trabalhar em "casa de família", como é comum serem chamados os ambientes de trabalho, diz muito sobre a manutenção de cargos, subvalorizados e de baixos salários, destinados a essas mulheres negras. Para elas, romper esse ciclo é um desafio e passa por superar uma série de opressões.

Preta-Rara e livro Eu, empregada doméstica - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Escritora, historiadora e rapper, Preta-Rara tem feito divulgação do livro pelo país
Imagem: Reprodução/Instagram

Preta-Rara, depois de sete anos trabalhando como empregada doméstica, é uma das que conseguiram desviar do destino que é insistentemente direcionado a mulheres negras. "E muito dessa autoestima que hoje tenho veio da minha mãe, semianalfabeta, que incentivou eu e minhas irmãs a estudarmos. Ela também nos dava força quando nos chamavam de macaca, gorda; nos dava como referência a [cantora] Alcione, mostrando que podíamos ser aquela mulher".

De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) sobre Mulheres no Mercado de Trabalho, de 2018, 95% dos postos de trabalhadores dos serviços domésticos em geral são ocupados por mulheres. O rendimento médio das empregadas domésticas é de R$ 845 (menos de um salário mínimo) e o mais baixo da tabela. Homens na mesma função têm rendimento médio maior (R$ 1.041).

Dentro do grupo de mulheres, o salário médio mais alto é o da categoria de médicas especialistas: R$ 12.618. O recorte é para pessoas de 25 a 49 anos.

Diálogo entre patrão e empregada

Em entrevista para Universa, Preta-Rara explica que o livro pode servir para construir diálogo real com quem contrata faxineiras, diaristas e trabalhadoras da limpeza, mas não formaliza seus direitos, previstos, inclusive na PEC das Domésticas. A ideia é despertar a empatia daqueles que acham possível uma relação trabalhista formal e mais justa para essas mulheres.

"A mulher acaba não cobrando seus direitos, porque parece que ela é propriedade privada do patrão", explica a escritora, que deixou de trabalhar como empregada doméstica em 2009, enquanto cursava o segundo semestre da faculdade de História, em Santos (SP), sua cidade natal.

'Quase da família? Nós já temos a nossa'

"O Brasil tem isso de 'ser quase da família', resultado de uma escravidão não concluída. Mas, o patrão tem que entender que contratar uma trabalhadora é como contratar um encanador para consertar algo: ele não vai ser visto como da família também. Inclusive, nós, empregadas, já temos nossa família".

De acordo com a PNAD Contínua divulgada em agosto deste ano, são 6,3 milhões de empregados domésticos. Eliminar esse tipo de ocupação, assim, é uma "utopia", diz Preta. "O país não supera o ranço colonial e não aprende que, assim como a gente aprende a limpar o corpo, também pode aprender a cuidar da própria sujeira, da casa".

Enquanto a visão sobre o trabalho de empregadas domésticas não muda, o que dá margem a relações de abuso, assédio, entre tantas outras reunidas no livro, Preta-Rara continua dando espaço para mulheres falarem sobre as vivências que refletem, por vezes, casos de racismo, machismo e preconceito de classe. "O que quero é que elas entendam que têm um lugar no mundo e não se calem frente à opressão, que até vem de outras mulheres, brancas. Temos direito à voz".

"Eu mesma, criadora de conteúdo, tenho medo de voltar a ter que fazer faxina. Vivemos em um lugar machista e elitista e minha identidade — artista independente, mulher, preta — não condiz com o que a sociedade espera de uma professora de História ou escritora, por exemplo".

Livro Eu, empregada doméstica - Divulgação - Divulgação
Livro reúne depoimentos enviados para o perfil "Eu, Empregada Doméstica", no Facebook
Imagem: Divulgação

"Eu, empregada doméstica: a senzala moderna é o quartinho da empregada" está à venda no site da editora Letramento (R$ 34,90). Veja dois depoimentos.

1) "Meu primeiro emprego de doméstica foi aos 10 anos, eu fazia de tudo. Na hora do almoço eu esperava todos da casa comerem e depois a patroa juntava os restos de arroz e feijão para me dá (sic). E teve um mês que ela não pagou meu salário porque eu quebrei um cisne de decoração. Ela gritava muito comigo".

2) "Uma conhecida casou e, como presente de casamento, seus pais mandaram pra casa dela a empregada da casa deles, que era 'muito boa de trabalho e ia ajudar neste começo de casamento'. A moça ficou extremamente feliz e disse que foi um dos melhores presentes de casamento".