"O público negro está ávido pra se ver na TV", diz atriz de novela da Globo
Colocar um pouco dela mesma nas histórias que interpreta e conta tem dado certo para a atriz e diretora Ana Flávia Cavalcanti, 37, que viverá a policial Miriam na próxima novela das 21h da Globo, "Amor de Mãe", que estreia no fim de novembro.
Nascida em Diadema, na Grande São Paulo, filha de mãe solo, negra e empregada doméstica --"graças a Deus agora aposentada"--, Ana também foi doméstica aos 15 anos. Vai para o quarto papel na Globo, o primeiro no horário nobre. Antes, fez as novelas "Além do Tempo" e "Malhação -- Viva a Diferença" e a série "Sob Pressão". Como diretora, verá seu primeiro filme, o curta-metragem "Rã", baseado em um episódio vivido por ela, ser exibido em três festivais de cinema, entre eles o Festival de Cinema Goreé, no Senegal.
Para o roteiro de "Rã", a inspiração veio do passado pobre da família. "Eu morava com minha mãe e minha irmã. Era bem cuidada, mas não tínhamos muito dinheiro. Um vizinho vendia laticínios vencidos, tipo iogurte e queijo, no mercadinho, e a gente comprava por um preço mais barato que o normal. Se não fosse assim, não dava. O filme conta um pouco dessa história", diz. "Sei que até hoje muitas famílias pobres fazem isso. É doido pensar que passávamos por isso nos anos 1980, e hoje, em 2019, a fome ainda é um tema."
A policial da novela foi enquadrada na vida real
Moradora do bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, Ana conversou com Universa na quarta-feira (2). Começou a entrevista relatando "uma coisa horrível" que aconteceu no dia anterior. Em Ipanema para dar um mergulho no mar, conta ter sido abordada por dois policiais de moto ao atravessar a rua para chegar à praia. "Parou um na frente e outro atrás. Perguntaram se eu era moradora, o que estava fazendo ali. Eu quis saber do que era suspeita", conta.
"Queriam ver minha bolsa, neguei. As únicas pessoas que estavam se divertindo ali eram brancas. Eu era a única negra e fui parada, sem ninguém me acusar de nada, enquanto andava na rua falando no Whatsapp com a minha mãe", lembra. "Depois de verem que eu sabia os meus direitos, um deles disse: 'Ô, minha senhora, pode ir para a sua praia'. Fiquei em choque, não prestei queixa nem nada. Tem toda uma cadeia de violências que os negros sofrem ligadas ao racismo. Fiquei pensando em como contar isso na minha arte. É um assunto que está me mobilizando muito, muito mesmo."
Por episódios como esse, ela diz "morrer de medo da polícia". "Foi o terceiro enquadro em 2019." Como esse tipo de situação se relaciona com o papel de policial que ela terá na próxima novela das 21h? "Ainda não sei muito sobre a Miriam, mas me parece que é uma mulher de força e fibra. Sei que a vida dos policiais não é boa, eles morrem muito, enlouquecem. Eu gostaria de encontrar os policiais do meu bairro e oferecer uma água. Mas a polícia do Rio está mais violenta do que nunca."
Ainda falando da personagem Miriam, ela destaca como a aparência da personagem vai reverberar a cultura negra. "Para a caracterização, estou usando tranças. Ela tem um resgate das suas raízes. Não é uma mulher negra de cabelo alisado. Ela sabe de onde veio."
Sobre a emissora global estar colocando mais atores negros em suas novelas, "não só a empregada que fica lá atrás", Ana afirma que a mudança é tardia, mas benéfica. "Finalmente aconteceu de perceberem que o maior público do canal é a população preta, e ela quer se ver. O público preto existe e está ávido para isso."
Bi com orgulho
Ana costuma levantar várias bandeiras em suas redes sociais. Principalmente contra o presidente, Jair Bolsonaro, contra o racismo, o machismo e a homofobia. Namorando há quatro meses a também atriz Tati Villela, diz que "ser feliz num amor gay, de duas mulheres pretas, é uma obrigação" dos tempos atuais.
"Se tenho visibilidade por meio do meu trabalho, tenho que falar para outras garotas bissexuais, como eu, e lésbicas que podem estar aí, se assumindo, e para as mães delas, que é uma vida normal e que o importante é a outra pessoa te respeitar, seja ela quem for", diz. A primeira experiência amorosa, ela conta, foi com uma mulher aos 15 anos. A mãe de Ana, porém, não aceitou bem a orientação sexual da garota na época. "Foi um momento complexo, nos afastamos, paramos de nos falar. Mas, depois de um tempo, voltamos a ser mãe e filha."
Sobre a namorada, Ana se derrete. "Ela é uma preta de pele escura. O racismo que vive é muito único. Tati vira o jogo, se resolve. Além de ter uma voz linda e fazer poesias que eu adoro."
A babá foi passear
A carreira de atriz começou após um período como modelo publicitária. Em 2015, estreou na Globo como Carola na novela das 18h "Além do Tempo". Fora o trabalho na televisão, Ana também se dedica ao teatro e a performances urbanas. Em uma delas, para em locais de grande movimentação, como a avenida Paulista, em São Paulo, vestida de branco, dentro de um carrinho de bebê rosa com tamanho suficiente para caber uma pessoa adulta. Fuma, bebe, puxa conversa com as pessoas. Em um balão preso ao carrinho está escrito o título da performance, "A Babá Quer Passear", em que ela interpreta a personagem título em um dia de folga.
"Tem um pouco de ter visto minha mãe trabalhar como doméstica e não estar por perto. Mas, na época, nem me dava conta, o que importava é que ela voltava no ônibus das 17h30", diz. "Mas, quando mudei para o Rio, comecei a ficar indignada com as babás negras empurrando carrinhos com os filhos das brancas. Como na escravidão. E quem estava cuidando dos filhos das babás? Quanto elas recebem? É uma relação de trabalho justa?"
Em maio, ela foi, vestida como babá, a uma manifestação na capital paulista a favor do presidente Jair Bolsonaro. "Teve muitos olhares de desprezo. Fui embora quando começaram a gritar muito em favor do Bolsonaro. Eu não ia gritar e achei que poderiam perceber e ficar perigoso", diz.
"Em outro dia, no bairro de Madureira, no Rio, aconteceu de um grupo de LGBTs me levarem para passear, foi muito divertido. Mas, no geral, nos lugares que estive, as pessoas não me olhavam e aplaudiam. Passavam do lado e diziam: 'Coitada dessa maluca'."
Da performance surgiu a peça "Serviçal", na qual a atriz pede aos espectadores negros que contem suas histórias de trabalho, ao mesmo tempo em que relata depoimentos que colheu durante seus passeios como babá. O próximo trabalho, diz Ana, deve ter relação com a abordagem policial que viveu. "Só consigo defender minhas ideias pelo meu trabalho. Achei que isso fosse passar com o tempo, que, ao migrar de classe social, em algum momento eu fosse ficar em paz para poder viver minha vida. Mas tenho vivido o contrário."
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