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Trans, travesti, intersexo, gay: diferenças em um papo reto com Hailey Kaas

A tradutora Hailey Kaas, que discute transfeminismo no Brasil - Reprodução/Instagram
A tradutora Hailey Kaas, que discute transfeminismo no Brasil Imagem: Reprodução/Instagram

Maurício Oliveira

Colaboração para Universa

09/10/2019 04h00

Transfeminismo, já ouviu falar? O conceito, ainda em formação no país, busca jogar luz sobre questões que estão ligadas tanto às discussões feministas como aos temas LGBTI+. Um dos principais nomes à frente desse debate é a tradutora Hailey Kaas, 30. A partir do próximo dia 16, Hailey dará no Sesc-SP o curso Raízes do Transfeminino, planejado justamente para proporcionar uma visão geral do tema.

Hailey, nome escolhido aos 16 anos, conta que o interesse pelo transfeminismo começou quando ela se deu conta de que as questões mais específicas das pessoas trans não costumavam ser tratadas pelo feminismo hegemônico.

"Havia um certo preconceito velado, a ideia de que não era um assunto para o feminismo, e sim uma questão LGBTI+", lembra ela. "Da mesma forma, dentro da militância trans mais institucionalizada, não havia uma discussão aprofundada sobre as questões feministas."

Foi então que, ao sair à procura de informações que pudessem ocupar esse vácuo, ela chegou ao conceito de transfeminismo, sobre o qual havia muito material em inglês. Hailey propôs-se então a traduzir artigos e disponibilizá-los num site, o transfeminismo.com, que se tornou referência. "Numa definição muito simples, é o feminismo pensado à luz das questões trans", diz ela.

Entre várias outras causas, o transfeminismo luta contra os estereótipos de feminilidade - ou seja, a expectativa de que mulheres trans sejam hiperfemininas para serem reconhecidas -, contra a ideia de que identidade de gênero e sexualidade são a mesma coisa e contra a patologização das identidades trans. "A medicina ainda nos considera doentes mentais", diz Hailey.

Nascida numa família de classe média de São Paulo, ela se formou em Letras e se dedica à tradução. Sua especialidade é o inglês, mas vem fazendo também aulas de japonês. Muitos dos trabalhos que realiza são da área acadêmica, em decorrência principalmente dos contatos feitos como pesquisadora do transfeminismo e de questões do universo LGBTI+.

Em 2018, ela foi candidata a deputada estadual em São Paulo pelo PSOL e recebeu 6.176, o que não foi suficiente para uma vaga na Assembleia.

Nesta conversa, Hailey Kaas fala sobre a realidade das pessoas trans no Brasil e explica as diferenças entre as letras que compõem a sigla LGBTI+.

UNIVERSA: Como foi o seu processo de descoberta?

HAILEY KAAS: Foi muito complicado, como quase sempre é. Lembro de uma festa junina em que eu queria usar um chapéu com trancinhas e fui vítima de muito bullying por conta disso. Dos colegas e dos adultos. E eu era apenas uma criança de cinco ou seis anos que não tinha maldade alguma. Meu pai era machista e queria que eu o acompanhasse em programas tipicamente masculinos, mas não eram programas que me interessavam.

Ao perceber minhas tendências femininas, ele culpava minha mãe. Entrei na faculdade ainda me vestindo como homem. Fui mudando aos poucos durante o curso. Um dia com uma calça mais justa, outro com uma camiseta marcando a cintura, de repente um colar.

Só comecei a tomar hormônios aos 19 anos. Ouvia falar que fazia mal e me preocupava. Então, não houve um marco claro, um turning point, "hoje vou vestida de mulher". Muita gente tem uma história parecida. As pessoas avançam, recuam, avançam de novo, recuam de novo. Há um grande receio da violência, da pressão social.

Imagina um servidor público, que sabe que vai trabalhar com as mesmas pessoas a vida toda, aparecer de repente como mulher? Por isso muitas pessoas trans levam adiante por muito tempo a expressão de gênero masculina, casam, têm filhos, e para todos os efeitos da sociedade são héteros cisgêneros, até que chega o momento em que realizam a transição.

Do que falamos quando nos referimos à transexualidade?

A forma como a gente se expressa, como a gente vivencia o gênero, é diferente da forma como a gente sente o desejo. Geralmente homens gays se sentem atraídos por outros homens e pessoas heterossexuais se atraem por uma pessoa com gênero diferente do dela.

A transexualidade é uma experiência identitária do ponto de vista do gênero, não especificamente da sexualidade, embora as duas coisas inevitavelmente se cruzem. Quando a gente fala de transexualidade, são pessoas que desejam viver uma outra vida, experienciar o gênero de uma outra forma que não aquela que foi imposta a ela.

Eu fui criada como a sociedade entende que um homem deve ser criado, mas eu não me sentia representada por tudo que tradicionalmente envolve a masculinidade. Eu me sentia mais confortável me identificando como mulher, então eu transicionei.

A minha sexualidade é outra coisa. Desde cedo, eu sempre me atraí por homens, mas depois percebi que também me atraía por mulheres. Então, hoje eu sou bissexual. O termo cisgênero vem da militância para denominar as pessoas que não são trans. E aí não tem a ver se são héteros ou não. Quem não é trans é cis, e vice-versa. A rigor, portanto, a pessoa cisgênero é aquela que não vive a questão interna de modificar o gênero.

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E a diferença entre trans e travestis, qual é?

Normalmente você vai ouvir a seguinte explicação: se fez a cirurgia, é trans; se não fez, é travesti. Há também a visão deturpada de que a transexualidade não é uma escolha, enquanto a travestilidade seria uma perversão: o cara é tão gay, mas tão gay, que chegou a colocar peito.
Para mim, no entanto, a diferença tem muito mais um caráter de classe.

A gente tende a usar o termo trans para pessoas de classe média que tiveram acesso a determinado tipo de educação e exercem um tipo de feminilidade mais padronizado. Já as travestis são aquelas que normalmente vêm de classe social mais baixa, não tiveram muito estudo, têm outros tipos de características e expressões de gênero.

Há muitas travestis, inclusive, que não fazem a cirurgia simplesmente porque é o ganha-pão delas.

Não há também uma visão de que travestis seriam aquelas que se prostituem?

Sim, uma coisa está ligada à outra, pela mesma questão de classe. Muitas das travestis foram jogadas na rua na adolescência, abandonadas pela família, sem receber qualquer tipo de apoio. Não estudaram e não conseguem ter um emprego, então recorrem à prostituição como único caminho para sobreviver.

É uma situação altamente paradoxal, pois os mesmos caras de uma sociedade altamente repressora, representantes da família tradicional brasileira, que não quer ver travesti na escola, no shopping, nas empresas, são esses mesmos caras que vão à noite buscar travesti para transar. E que matam as travestis, provavelmente por não saber como lidar com o próprio desejo.

Quando o presidente Jair Bolsonaro foi eleito, houve um temor geral de que as pessoas LGBTI+ passariam a sofrer maiores riscos. O que se pode falar, nesse sentido, em relação às trans?

No meu caso específico, a situação é um pouco menos tensa, porque eu "passo", termo que a gente usa para as pessoas que não parecem tão claramente que são trans. Isso significa que estou de certa forma blindada de sofrer agressão na rua.

Também já retifiquei meu nome nos documentos, o que me blinda de outra forma. Certamente é muito pior para as travestis que trabalham com sexo. Há casos de sujeitos que passam na rua, de carro, e atiram. Mas isso faz parte de um contexto geral de aumento da violência, de escalada da intolerância.

A militância trans passou a se distanciar um pouco da militância gay, que nunca deu muita visibilidade para a causa trans. Tudo isso vem repercutindo de forma positiva na mídia. Foi preciso trabalhar com a imprensa para convencer que não faz sentido colocar o nome civil da pessoa numa notícia, por exemplo. Qual a relevância dessa informação? Nenhuma.

Qual a diferença entre pessoas trans e intersexo, o "i" da sigla LGBTI+?

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As pessoas intersexo têm uma questão mais ligada à biologia. São aquelas que nasceram com características de cromossomos fora do padrão socialmente estabelecido. É o que antigamente se chamava hermafrodita, hoje um termo superado, porque tem uma carga negativa, de muito estigma.

Há um dado de que a cada 1.000 pessoas uma nasce intersexo, com características sexuais evidentes - ou seja, com algum tipo de ambiguidade, como ter pênis subdesenvolvido e útero, por exemplo. Essas pessoas são "corrigidas" pela medicina, que, a partir da análise dos critérios físicos, decide se a pessoa será homem ou mulher e faz as intervenções supostamente necessárias para isso. Lutamos para que isso não mais aconteça, que a criança cresça sem cirurgias, a não ser quando há algum tipo de risco à saúde, e decida lá adiante qual corpo quer ter.

Para ajudar a leitora a entender os conceitos, vou citar duas artistas muito famosas: Pablo Vittar e Laerte, por exemplo, são ambas trans?

A Pablo, não. Até onde sei, ela é uma drag, que se identifica como homem gay, cisgênero, e faz uma drag como expressão artística. Ou seja: se monta, performa como artista, e no fim do dia se desmonta. Não existe modificação corporal, nem uso de roupas femininas em tempo integral. O fato de ela fazer um tipo realista de drag, que imita estereótipos de feminilidade, aumenta essa confusão. Já a Laerte é trans, se assumiu como tal e hoje vive em tempo integral como mulher.