"Máscaras brancas": filtro para embranquecer fotos abala autoestima negra
Abrir a câmera frontal do celular, escolher um filtro e fazer uma selfie é, de fato, um movimento muito comum e aparentemente inofensivo. Para jovens negros, no entanto, o uso de ferramentas de edição de fotos pode esconder uma cruel questão de autoestima: ao mudar o visual, é possível se tornar mais branco (ou menos negro) e, assim, se encaixar nos padrões de beleza com referências europeias.
Alguns filtros são capazes de afinar o nariz, diminuir os lábios e até clarear o tom da pele. E essas são algumas das modificações aplicadas, no passado, por jovens como o auxiliar logístico Jusé Paulo Rodrigues.
No Twitter, ele publicou um "antes e depois" de como editava suas fotos e como tira selfies agora — o que gerou uma onda de relatos de quem também usava os filtros para se embranquecer, num reflexo sutil do racismo em que o negro não é associado à beleza.
"Eu fazia de tudo, tudo mesmo, pra parecer o mais branco possível, nem que fosse preciso editar a foto ate o talo, aumentava o destaque e o brilho. Eu só queria me encaixar nos padrões. Obs: o olho claro", escreveu na legenda da publicação.
Jusé tinha 17 anos na primeira foto, alisava o cabelo e usava lentes de contato para ter o olho claro, o que era reforçado pelo recurso da edição de foto.
Hoje, aos 23, reconhece sua própria beleza e as nuances desse processo. "Eu incentivava pessoas ao meu redor a assumirem sua verdadeira estética, mas eu continuava na mesma. Foi no ano seguinte dessa foto que passei a não me conformar mais com aquela 'maquiagem' toda", explicou para Universa.
"E é aquilo: meus amigos brancos não precisavam queimar o couro cabeludo com chapinha ou químicas [para tentar se encaixar em padrões]".
Quanto mais claro, "melhor"
Editar as fotos com "o brilho máximo", mexendo em tons para suavizar os traços negroides e eliminar o contraste a ponto de deixar a foto até um pouco embaçada, fazia parte dos ajustes que a relações-públicas Eloysa Lopes, hoje com 23 anos, aplicava em sua própria imagem aos 15 anos.
As fotos que usava para o Orkut e para o MSN passavam pela edição para que ela se aproximasse das referências de beleza que apareciam nas revistas teen que lia: ou seja, meninas e meninos brancos.
"Todos que eram bonitos e descolados eram brancos e com cabelo liso".
Não à toa, na primeira foto, Eloysa aparece com o cabelo alisado e, por conta da edição da imagem, com a pele bem mais clara do que a que tem naturalmente. A segunda foto é recente, após seu processo de se aceitar como mulher negra.
"Eu fazia isso inconscientemente, não tinha muito a noção do por quê. Fato é que as referências de beleza eram as meninas loiras, cantoras como a Katy Perry, os 'Colírios Capricho', pontua.
"Pele negra, máscaras brancas"
O estalo sobre a vontade de se embranquecer, para Eloysa, só veio quando uma amiga dos Estados Unidos, também negra, a perguntou sobre como era ser uma menina negra no Brasil.
"Eu tinha 16 anos e não soube responder. Mas, ficou na minha cabeça, porque estava começando a aceitar minha identidade e estética". Isso porque Eloysa também alisou o cabelo para tentar se encaixar no que via, mesmo gostando de seus cachos, e chegava a evitar pegar sol para que a pele não escurecesse mais.
Foi só estudando a questão racial e vendo outras pessoas negras se aceitando que ela passou a se identificar com sua negritude. "Eu li 'Pele negra, máscaras brancas' [de Franz Fanon], e entendi minha história. Fui entendendo que tinha, de fato, um sofrimento por passar pela adolescência, mas que era muito potencializado pela experiência racial. Vi que não era a única, o que deu uma acalmada em várias inseguranças".
"Achava que Deus me odiava por ter me feito assim"
A estudante de Direito Isabella Guedes Costa, 18 anos, sofreu com a pressão de tentar ter traços de pessoas brancas desde pequena. Desde os 7 anos, seus cabelos, quando não estavam com tranças, eram alisados com chapinha. A boca e o nariz grandes eram mais motivos de sofrimento.
Quando não escolhia batons claros para evitar chamar atenção para os lábios ou usava a base para o rosto com um tom mais claro do que a pele, Isabella tirava fotos com filtros para que essas alterações fossem feitas digitalmente.
"A verdade é que eu tentava me embranquecer o máximo possível. Com 7 anos, entrei num processo de depressão, e nem me olhava no espelho. Como era religiosa na época, achava que Deus me odiava pelo fato de ter me feito assim. Eu pensava: se ele me amasse, não teria me feito negra, nem com o cabelo assim, nem com meus traços".
"Minha narina sempre foi muito larga e eu sofria muito com isso, porque me zoavam na escola. Então, eu usava pregador de roupa e ficava segurando [para fechar o nariz]."
Isabella explica que parte de sua dificuldade de se identificar como negra também vinha de sua vivência em ambientes de maioria branca. "Estudava em colégio particular e ficava deslocada. Então, tentava me encaixar em algum tipo de grupo, o que era muito difícil".
Curiosamente, foi na escola que Isabella passou a refletir sobre como a imposição de padrões de beleza eurocêntricos — cabelos lisos e traços finos de rosto, por exemplo — também tinham a ver com o racismo que se dá na sociedade brasileira. E a relação foi notada durante as aulas de História.
"Quando eu ouvia a professora falar sobre escravidão, eu sentia que aquilo era a minha dor. Era minha ancestralidade. Então, fui percebendo que tinha que me aceitar para poder fazer jus a dor que meus ancestrais passaram para eu estar aqui".
A estudante explica que ressignificou sua aparência após ter feito o último alisamento dos fios, aos 15 anos. "Hoje não me reconheço mais nessas fotos. Porque era uma imagem do que as pessoas queriam de mim".
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