Topo

Estreante na SPFW, Angela Brito quer mudar nossa visão sobre a África

Modelo apresenta peças criadas por Angela Brito, que estreia nesta semana na SPFW - Reprodução/Instagram
Modelo apresenta peças criadas por Angela Brito, que estreia nesta semana na SPFW
Imagem: Reprodução/Instagram

Natália Guadagnucci

Colaboração para Universa

13/10/2019 04h00

O não lugar é uma constante na vida de Angela Brito. Nascida no Cabo Verde, ela cresceu em Portugal e vive há mais de duas décadas no Brasil. Entre um país e outro, uma mudança e outra, a sensação de não pertencimento sempre a acompanhou.

Não fincar raízes, porém, era exatamente o que ela precisava para explorar ao máximo seu potencial criativo. À frente da marca que leva seu nome, Angela cria roupas que unem símbolos tradicionais da moda cabo-verdiana a um design arquitetônico experimental, traduzindo suas vivências, os lugares por onde passa e as mudanças que quer trazer ao mundo.

Agora, ela se prepara para um novo momento: é uma das estreantes da próxima edição da SPFW (São Paulo Fashion Week), que acontece entre 13 e 18 de outubro no Parque do Ibirapuera. Seu desfile está previsto para as 18h da próxima quarta-feira, 16.

Estilista Angela Brito durante desfile na Casa dos Criadores, em 2018 - Divulgação - Divulgação
Estilista Angela Brito durante desfile na Casa dos Criadores
Imagem: Divulgação

A alfaiataria é a base da grife fundada há cinco anos, que tem DNA minimalista e faz parecer simples as modelagens mais complexas.

"As pessoas têm uma imagem preconcebida do que é África, sempre esperando estampas coloridas, mas isso não é nada típico do meu país. No Cabo Verde, a gente usa preto e branco, camisa e saia pregueada - coisas que costumam ser associadas à moda japonesa, mas são africanas também. É importante trazer um pouco mais das singularidades do continente", diz a estilista. "Minha marca tem esse propósito de mudar as narrativas, principalmente estéticas, relacionadas à África, desconstruindo a noção do que é bonito e do que é feio. Se você não tem essa ideia fixa do que é bonito, qualquer coisa pode te impactar. Traz liberdade."

Na construção de suas peças e pregueados primorosos, Angela Brito resgata também seu histórico no universo das Exatas —ela estudou engenharia por quatro anos. Na época, sequer imaginava que seu gosto pela costura poderia se tornar uma profissão. "A área tecnológica me trouxe outra maneira de criar", conta.

A forma como desenvolve as modelagens, que são estruturadas mas mantêm certa leveza, deixa isso evidente. "A modelagem é sempre aliada ao tema de cada coleção, que costuma ser mais subjetivo e precisa ser testado mil vezes até funcionar. A pesquisa me toma um tempo longo, é um processo muito pessoal", explica.

Agora, para a estreia na SPFW, Angela apresenta o resultado de uma incursão inédita pelo universo das cores vibrantes e das estampas. A coleção, intitulada Fuga, olha para o estilo de vida dos homens e mulheres do blues.

Sou fascinada por tudo o que é simples, despretensioso. O modo de ser do blues para mim é fascinante. São pessoas que passavam a vida vivendo de uma grande paixão sem pensar no retorno material, construindo coisas brilhantes sem ter um grande reconhecimento

Na passarela, o tema deve se traduzir em peças com uma sensualidade mais aflorada, "que mostram certo poder sobre seu corpo", como ela própria define. "Pela primeira vez, consegui trabalhar cores com facilidade. As estampas também são fundamentais nessa coleção, e remetem a campos silvestres, totalmente abertos, com plantas que nascem aleatoriamente."

Na coleção, ela propõe ainda sua própria interpretação do afrofuturismo -- movimento cultural que usa elementos da ficção científica para criar novas perspectivas negras. "O afrofuturismo coloca a gente nesse lugar intergaláctico, com uma mulher negra que é meio 'avatar'. Na verdade, quando eu penso em afrofuturismo, penso em uma ligação com a natureza, com a terra, em uma volta à simplicidade."

Desfile Angela Brito na Casa dos Criadores - Divulgação - Divulgação
Modelos apresentam peças de Angela Brito na Casa dos Criadores
Imagem: Divulgação

Uma das poucas estilistas negras a figurar no calendário oficial da moda brasileira, Angela traz um necessário frescor ao evento. Ao lado do estilista baiano Isaac Silva, ela encabeça a dupla de estreantes da temporada; cada um, trazendo interpretações muito particulares de suas raízes — no caso de Isaac, há um trabalho com tecidos multicoloridos importados de países como Angola e Moçambique, além de referências a etnias indígenas e a religiões de matrizes africanas em suas criações.

"Quando a gente vê na passarela uma coleção e um casting como os que Angela apresenta, percebe que aquilo é o resultado de como o racismo foi convertido em potência criativa como forma de reinvenção individual. Ela é um desses indivíduos que estão somando na construção de algo maior, de um coletivo menos afetado pelo racismo", afirma o stylist e consultor criativo Gabriel Carneiro, responsável pelo visual de nomes como Rincon Sapiência, Liniker e Linn da Quebrada.

Para participar da maior semana de moda do país, a cabo-verdiana teve que acelerar o ritmo de seu ateliê, que fica no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro.

"Tive menos de seis meses para me preparar. É um investimento gigantesco, e até tentei conseguir algum tipo de patrocínio, mas 99% das empresas com quem eu falei não podiam. Prefiro não projetar grandes retornos, acho que a marca vai se tornar mais conhecida, e talvez tenha mais pontos de venda. Mas o que fica é o aprendizado, é uma experiência que tem acrescentado muito", aponta.

Desfile Angela Brito na Casa dos Criadores - Divulgação - Divulgação
Desfile de Angela Brito na Casa dos Criadores
Imagem: Divulgação
As roupas, acessórios e bolsas que vão para o desfile estão sendo produzidos internamente, mas os sapatos são resultado de uma parceria das boas com a marca carioca A-Aurora, da designer Izabella Suzart, amiga da estilista. Por enquanto, além do ateliê, as peças de Angela Brito podem ser encontradas no e-commerce Shop2gether, onde uma peça de sua coleção gira em torno de R$ 1.000, e na multimarcas Pinga, em São Paulo. A partir da próxima semana, estarão também no coletivo Coletiza, em Curitiba.

"Angela tem um trabalho especial e de grande sensibilidade. Seu discurso de promover a liberdade através da moda vai ao encontro do que a SPFW acredita", diz Augusto Mariotti, diretor de conteúdo do evento. "É essa pluralidade de criações e visões que buscamos na curadoria das marcas participantes."

Para além do universo dos desfiles, alcançar o equilíbrio entre comercial e conceitual é um desafio para a engenheira. "Quando eu desenho uma coleção, ela está num nível praticamente não vendável, então eu vou 'limpando' aos poucos. Depois mostro para alguém que me diga 'para de maluquice!', aí limpo de novo, e assim vai. Adoraria não ter que fazer isso só por uma coleção", ela brinca.

Por outro lado, atingir uma estética totalmente comercial também está longe de ser o objetivo: "Gosto de pessoas que não consomem por consumir, que escolhem cuidadosamente cada peça que vão usar."

Se você tem coisas em você que não te traduzem, para mim já não interessa, porque não consigo entender quem você é. Não que a roupa te defina, mas ela fala por você. Por isso eu acho que a roupa tem que ter uma verdade muito grande, ser um pequeno momento de prazer na rotina. Trata-se do caminhar, não do final. E essa caminhada precisa ser feliz

Entre as clientes da grife, estão mulheres como a escritora Giovana Xavier, a comunicadora Luiza Brasil e a cantora Luedji Luna, vozes ativas em seus respectivos campos de atuação e, não à toa, alinhadas a essa busca por novas narrativas que as roupas da marca representam. São itens atemporais, avessos a tendências passageiras, mas em nada parados no tempo. Na verdade, fazem até pensar no futuro, como se criassem uma conexão com um mundo que ainda está por vir —uma perspectiva que nasce exatamente da sua experiência de deslocamentos.

"Quando você vive muito tempo fora do seu país, você não pertence a lugar nenhum e pertence a todos. As pessoas também fazem questão de lembrar o tempo todo que você é estrangeiro. Ao mesmo tempo, o que eu crio recebe apoio de lugares muito diferentes, e isso quer dizer que a marca é realmente cosmopolita: em qualquer parte do mundo, conseguem entendê-la", diz Angela Brito.

"Ser imigrante traz isso, porque você não pensa mais como se estivesse preso. Você está solto, levitando e fica o tempo todo em aberto. Tanto faz onde eu estou. Minha casa, eu carrego dentro."

A moda do Cabo Verde em três elementos-chave

Alfaiataria: camisas, calças de corte impecável e construções estruturadas: a alfaiataria é ponto forte do estilo tradicional do país e a base das criações de Angela Brito

Preto & branco: nada de cores acesas: os neutros dominam as roupas, em sintonia com um estilo atemporal, utilitário e superelegante

Pregueados: resultado de uma técnica complexa, as pregas trazem movimento às roupas tipicamente cabo-verdianas, aparecendo em detalhes ou envolvendo peças inteiras.