O marido dela abusou das duas filhas: "Dói muito lembrar que não fiz nada"
As duas filhas de Rosiam*, 46, foram abusadas na infância pelo próprio pai, de 52. A pedagoga também era agredida pelo homem e acredita ser responsável por não ter tomado uma atitude antes que o pior acontecesse.
Mas, em 2013, Rosiam buscou uma delegacia de defesa da mulher em Diadema, região metropolitana de São Paulo, e hoje o homem é procurado pela Justiça para cumprir pena de 22 anos de prisão por crime de estupro. Ele é considerado foragido.
Em mais de uma hora e meia de conversa com Universa, a pedagoga fala em culpa e em como a família tenta se reerguer. E chora muito ao falar do drama de ter um agressor dentro de casa. Hoje, as filhas estão com 28 e 19 anos e evitam tocar no assunto.
Dados recentes do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos revelam que mais de 70% dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes são praticados por pais, mães, padrastos ou outros parentes das vítimas.
Histórico de violência
O pai de Rosiam era alcoólatra e saiu de casa quando ela ainda era criança. A mãe era muito rígida e não poupava a menina de uma surra se chegasse em casa tarde, por exemplo. Ela então resolveu sair de Mauá, região metropolitana de São Paulo, aos 13 anos, rumo a Poá (a cerca de 25 quilômetros), para morar com um tio. Ele era casado com a irmã do seu hoje ex-marido. Foi assim que se conheceram e foram morar juntos em seguida.
"A família se misturou porque dois tios meus eram casados com duas irmãs dele", ela explica.
Rosiam não consegue se dirigir ao agressor como ex-marido ou pai de seus três filhos. A todo instante, é "a pessoa em questão".
Primeira agressão
O homem bateu em Rosiam quando ela tinha 14 anos. A pedagoga tentou, então, voltar para a casa da mãe, que não a deixou entrar. "Ela disse que, se foi a minha escolha (morar com outra pessoa), era para seguir aquele caminho."
O primeiro filho do casal nasceu quando Rosiam tinha 16 anos.
"Mas a violência continuou e os filhos foram chegando. Nunca entendi o porquê das agressões. Até nas crianças ele batia. Tinha medo e vergonha de denunciar porque as famílias eram misturadas. Uma vez, a minha cunhada falou: 'Se aguentou até agora, aguenta mais'. Não tinha a quem recorrer. É tanto julgamento que você vai empurrando com a barriga."
A psicóloga Alessandra Cássia da Silva, que atende vítimas de violência doméstica no Centro de Referência às Vítimas da Violência do Instituto Sedes Sapientiae, explica que muitas mães que procuram o local para falar de uma violência contra o filho revelam ter passado pela mesma situação. E, sem apoio, é difícil para elas sair de perto do agressor.
"Torna-se um ciclo que precisa ser quebrado. Por isso a importância de acolher essas mulheres, sem julgamento."
"Descobri o primeiro abuso em 2010"
Quando a filha do meio completou 17 anos, escreveu uma carta para a mãe detalhando os abusos que sofreu dos 10 aos 15:
"Ela contava ali, por exemplo, que, quando pedia dinheiro para a pessoa, ele dizia que só dava se ela fizesse coisas com ele. Passei mal lendo aquilo. Ele fez de tudo com ela. Só não houve penetração. Chorei como uma desesperada".
Confrontado, o homem negou e disse que a filha estava inventando porque não gostava dele. A adolescente resolveu sair de casa após o episódio. Rosiam ficou e diz que passou a prestar mais atenção no comportamento da caçula, então com 10 anos.
"Ela era o xodó dele. Jamais imaginaria que ele estava abusando dela. Sei que é difícil acreditar. Só vivendo a situação para explicar."
Preso por ato obsceno
Naquele mesmo ano, Rosiam deparou com os vizinhos tentando abrir a porta de sua casa, ao chegar do trabalho. Seu ex-marido estava na janela mostrando o órgão sexual para duas adolescentes. A polícia foi acionada e ele foi preso pela primeira vez, por ato obsceno. Saiu da prisão em três meses.
O casal seguiu morando no mesmo apartamento, mas já em processo de separação. Ela explica que não tinha para onde ir e que ele não quis deixar o imóvel. Ao flagrar o ex-marido novamente mostrando as partes íntimas pela janela, foi à delegacia com as duas filhas.
"Elas foram ouvidas por uma assistente social e por uma psicóloga, sem a minha presença. Horas depois, as profissionais me contaram que as duas foram abusadas por esse homem. Faltou chão."
O homem foi preso dias depois. O filho mais velho do casal não acreditou na história das irmãs e até hoje não fala com a família. Outros parentes também se afastaram. Em contrapartida, a filha mais velha voltou para casa:
"A psicóloga acredita que provavelmente meu filho sofreu abuso, mas está em negação. É uma tristeza profunda vê-lo contra mim".
"Me questiono onde estava"
O agressor teve o direito de responder o processo em liberdade, e passou a persegui-la no trabalho, na rua, em qualquer lugar, ela conta. Rosiam conseguiu uma medida protetiva, mas resolveu sair do apartamento por questões de segurança. Ela hoje mora no ABC paulista.
Em 2017, seu ex-marido foi condenado a 22 anos de prisão em regime fechado por crime de estupro de vulnerável, mas está foragido.
A pedagoga diz não ter coragem de conversar com as filhas sobre o tema até hoje. Conta que as duas tiveram problemas de relacionamento e que a mais velha chegou a usar drogas. Mas, com a ajuda de uma psicóloga, deu a volta por cima, terminou a faculdade de gestão de pessoas, mora com o namorado e está grávida de quatro meses. A mais nova cursa gerontologia e teve uma filha, que hoje tem um ano. Rosiam, que tem quadro de depressão, casou-se novamente.
"Eu me sinto responsável pelo que aconteceu porque minha filha me deu a carta e não fiz nada. Me questiono onde estava porque não percebi a realidade. Dói muito lembrar que eu não fiz nada na época. Mas a mais velha já disse que entende eu não ter percebido muitas coisas. Aquilo deu um conforto no meu coração."
E aconselha outras mães: "É preciso sempre ter o pé atrás, prestar atenção. E ouvir".
* O nome foi trocado para preservar a identidade da vítima.
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