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Após sofrer assédio, empresária certifica locais como "amigos das mulheres"

Ana Addobbati e Nathalia Waldow, da Women Friendly - Divulgação
Ana Addobbati e Nathalia Waldow, da Women Friendly Imagem: Divulgação

Cláudia de Castro Lima

Colaboração para Universa

21/10/2019 04h00

Certa noite, há dois anos, a administradora e jornalista pernambucana Ana Addobbati estava em um bar, no Uruguai, quando um sujeito inconveniente encostou nela e começou a puxar conversa. Ana não estava a fim de papo e fez o que muitas mulheres costumam fazer nessa situação. "Só pensei em ir embora dali, achando que a culpa era minha", conta. Um garçom veio socorrê-la, dizendo que ela não precisava ir embora - quem deveria fazer isso era o homem que a estava assediando.

"Foi o que deu o estalo: por que isso não acontece sistematicamente em todos os estabelecimentos e organizações?", Ana se perguntou. Quando voltou para o Brasil, resolveu abrir uma startup que tivesse como objetivo combater o assédio sexual.

Para isso, funcionários de estabelecimentos comerciais e de empresas seriam treinados para entender o que é assédio, como preveni-lo, o que fazer em uma situação em que ele ocorra e quais as implicações legais para a organização caso ocorra um caso assim.

A Women Friendly nasceu em maio de 2017 para certificar as empresas que estão comprometidas com a cultura de prevenção e combate a esse tipo de violência -é, na prática, um selo de garantia de que, naquele local, mulheres estão seguras.

Novo pacto comportamental

Até criar a startup, Ana vivenciou diversas situações de assédio em sua vida sem nem se dar conta. Formada em jornalismo e em administração de empresas, ela começou a carreira como repórter de televisão, cobrindo futebol e polícia. Depois de alguns anos, em busca de uma vida com mais rotina, voltou-se para a administração e foi morar na China e em Dubai, trabalhando com cultura organizacional.

De volta ao Brasil, envolveu-se com a organização dos Jogos Olímpicos de 2016, ao mesmo tempo em que fazia um mestrado. Não demorou para descobrir-se com uma baita estafa. "Estava com sobrepeso e fui fazer terapia. Nela, percebi que minha falta de cuidado com meu corpo vinha de episódios de assédio ou abuso que sofri ao longo da vida."

De propostas estranhas que recebia de clientes até piadas tóxicas feitas por chefes, Ana notou que passara a carreira sendo vítima dessa violência sem reagir. O episódio no Uruguai foi só a gota d'água. "Assédio tem a ver com poder", diz. "As pessoas costumam achar que assédio tem sempre relação com chantagem explícita ou intercurso físico. Mas não. A piada que constrange também é."

Ana criou a Women Friendly com a advogada Nathalia Waldow, que tem vasta experiência em casos de discriminação de gênero e que, como 57% das mulheres (de acordo com a plataforma Herforce), já sofreu assédio no trabalho. O treinamento presencial ou online que a empresa oferece é baseado em conteúdos propostos e divulgados pela ONU Mulheres, braço da Organização das Nações Unidas que promove a igualdade de gênero, e nas leis brasileiras.

A ideia não é culpabilizar o homem, mas esclarecer o que é o assédio sexual e propor um novo pacto comportamental entre todos. No caso do treinamento para proteger a cliente em restaurantes ou eventos, o objetivo é fazer entender que toda mulher, não importa como esteja se comportando ou se vestindo, deve ser protegida e acolhida quando vítima de assédio.

50 mil pessoas impactadas

O selo Women Friendly é dado para uma empresa ou estabelecimento apenas quando seus colaboradores fazem o treinamento de educação e quando um canal de ouvidoria interna é criado, para que funcionários e clientes possam fazer denúncias e pedir auxílio, num processo auditado.

"Assédio é crime. As empresas têm que entender isso. Elas podem ser implicadas legalmente se um caso assim ocorrer com elas", afirma Ana. De acordo com uma pesquisa da consultoria Kourier, o número de processos relacionados ao assédio sexual aumentou 200% nos últimos três anos - destes, 88% são relacionados à área trabalhista.

Até hoje, 450 pessoas participaram dos treinamentos da empresa. Receberam o selo Women Friendly festivais como o Coquetel Molotov (o maior de música indie do Brasil) e o Social Good Brasil (de inovação voltada à ação social), festas como a Carvalheira na Ladeira 2019 (que ocorre em pleno Carnaval, em Recife) e estabelecimentos como a rede Camarada de restaurantes (que tem lojas em cidades como Recife e Rio de Janeiro), o restaurante Cá-Já (na capital de Pernambuco) e o hostel Madá (em São Paulo).

Ana calcula que mais de 50 mil pessoas tenham sido impactadas ao frequentar os ambientes livres de assédio.

Há três anos, Ana Garcia, uma das fundadoras do Coquetel Molotov, que reúne cerca de 7.000 pessoas, conheceu a Women Friendly. "Fomos o primeiro festival com o selo", diz ela. "Achamos fantástica a possibilidade de fazer o público se sentir seguro e mostrar para quem trabalha no evento, de seguranças a pessoas do bar e produtores, como se deve agir em caso de assédio."

Segundo ela, os próprios fornecedores acabaram impactados. "Trabalhamos com duas empresas de segurança, que hoje já contratam pessoas trans para a equipe", diz. "Como eles estão presentes em vários eventos, isso indiretamente reflete em outros locais. Em lugares como a Austrália, em qualquer bar ou lugar que se entre, todos estão preparados para lidar com casos de assédio. Espero que isso aconteça num futuro próximo no Brasil."

Para a empresária Ana Addobbati, nesses tipos de estabelecimento o selo Women Friendly não é importante apenas para os clientes. É, também, para as próprias funcionárias. "É uma relação ganha-ganha: a empresa age de acordo com a lei e evita processo, e a cliente sabe que está ali protegida", diz. "A base de tudo é a educação para transformação. Precisamos mudar essa cultura nefasta, enraizada, de aceitar o assédio. Sem ele, o ambiente fica muito mais sustentável para todos os que o frequentam."