A mulher mais amada e mais odiada da Argentina: conheça Cristina Kirchner
Cristina Fernández de Kirchner, 66, atual senadora e presidente da Argentina entre 2007 e 2015, pode voltar a ocupar o governo do país caso o resultado das eleições presidenciais do próximo domingo (27) confirmem todas as pesquisas feitas até agora. Ela é vice na chapa do candidato à presidência Alberto Fernández, que foi seu chefe de gabinete e lidera as intenções de voto.
As chances de a dupla vencer são altas: nas eleições primárias de agosto, realizadas para definir candidatos que de fato concorrerão, a chapa Fernández-Fernández foi escolhida por 47,4% dos eleitores, 15,1% à frente de Mauricio Macri, atual presidente que tenta a reeleição. O atual opositor sucedeu Cristina no comando do país, em 2015. Ela, por sua vez, sucedeu o próprio marido, Néstor Kirchner, morto em 2010.
Pesquisas recentes mostram que a vitória pode acontecer já no primeiro turno. A consultoria Opina Argentina divulgou um levantamento na quarta-feira (16) em que se registra uma diferença de 20 pontos percentuais: 52% para a chapa de Alberto e Cristina contra 32% para a de Macri. As pesquisas foram divulgadas pelo jornal Clarín, acusado com frequência pelos Kirchner de persegui-los e de querer derrubá-los.
Cristina é hoje, ao mesmo tempo, a mulher mais amada e a mais odiada do país. Se, de um lado, seu nome tem peso fundamental na possível vitória de domingo, de outro, ela está na mira da Justiça e, consequentemente, de parte da população argentina: é apontada como líder de um esquema de propina que teria sido paga em troca de concessão de contratos de obras públicas durante o período em que ocupou a Casa Rosada, sede do governo argentino. A suspeita é de que ela tenha cometido os crimes de suborno passivo e formação de quadrilha, e só não foi julgada ainda por ter imunidade parlamentar.
Universa leu o livro de memórias lançado por Cristina neste ano, "Sinceramente", best-seller ainda sem edição no Brasil, e listou fatos da vida pública da polêmica mulher de maior força política na Argentina.
"Me premiaram com o apelido de égua"
Égua, na Argentina, é um termo usado pejorativamente para se referir a uma mulher muito bonita, ou então àquela que se impõe. No livro "Sinceramente", Cristina dedica o capítulo "Uma Égua no Governo" para falar sobre como o apelido que lhe foi dado está ligado aos ataques que sofreu, em todo seu mandato presidencial, por ser mulher.
Conta que começou a ser chamada assim pelos grandes empresários do setor ruralista durante embate sobre aumento de impostos na produção de soja. "Me faziam rir muito com seu extremo machismo e conservadorismo", diz.
Fora isso, conta, era chamada de "louca", "histérica", "bipolar" e atacada por sua aparência, tanto em jornais quanto pelos próprios eleitores. "Uma vez uma senhora me escreveu no Facebook: 'Por que não experimenta sair despenteada, engordar?'" Mas diz que em nenhum momento cogitou mudar seu comportamento para ser levada a sério. "Não seria eu."
"Enquanto escrevo, penso com dor que, apesar de ter sido a primeira mulher eleita presidenta da história [argentina], não surgiu nenhuma voz feminista para condenar o ataque pela minha condição de mulher. Atenção: não digo que deveriam ter defendido o governo, nem as políticas, nem a nenhuma pessoa em particular, mas ao gênero que estava sendo agredido."
Primeira mulher reeleita da América
Cristina decidiu concorrer novamente à presidência em 2011, depois do primeiro mandato, em meio a "conquistas, vitórias, crises econômicas globais, derrotas políticas, rupturas internas, rumores sobre renúncia". Diz ter ganhado fôlego com seus apoiadores mais jovens, que criaram o slogan "Força, Cristina". Foi reeleita em primeiro turno, com 53% dos votos, 37% de vantagem sobre o segundo lugar. "Virei a primeira mulher reeleita na América." Além desse título, ela ainda conquistou a votação mais expressiva no país desde que o general Juan Domingo Perón (1895-1974), até hoje um dos principais ícones políticos do país, foi eleito pela terceira vez em 1973, com 62% dos votos.
Nos dois mandatos, diz, "estimo que firmei uns dez mil decretos, um pouco mais".
Despedida da Casa Rosada e gritaria de Macri
O hoje candidato à reeleição Mauricio Macri foi o sucessor de Cristina Kirchner após o segundo mandato dela. Em dezembro de 2015, ela deveria passar a faixa e o bastão presidencial ao presidente eleito no Parlamento. Mas Macri, segundo ela, a procurou para que o ritual acontecesse na Casa Rosada. Cristina negou o pedido para que se seguisse a tradição. Macri aceitou. Mas, no dia seguinte, ligou aos berros para a colega:
"Ele gritava e me culpava por querer arruinar sua posse. Eu não entendia o que havia acontecido e falei que ele não ia gritar comigo nem me maltratar. Ficou mais violento e não tive outro remédio a não ser desligar o telefone."
Cristina não participou da posse e a tradição de "passar a faixa" foi quebrada. Ela mesma conta que, logo após as eleições, pensava na cena e ficava com o coração espremido. Seu plano era deixar a faixa e o bastão em cima da mesa, cumprimentá-lo e ir embora. "O Cambiemos [partido de Macri] queria aquela foto: seria Cristina, a égua, a soberba, a autoritária, a populista, em um ato de rendição".
"Um dia antes de terminar meu mandato, me despedi dos argentinos na Praça de Maio", escreve Cristina. "Antes de virar abóbora."
Tensões com o papa Francisco
Cristina narra as relações com o papa Francisco quando ele ainda era o arcebispo de Buenos Aires Jorge Bergoglio, ou seja, antes de 2013, quando foi anunciado o seu nome para o novo papado.
Jornais argentinos afirmavam que a relação da presidente com Bergoglio enfrentava um momento complicado após a sanção da Lei do Matrimônio Igualitário, de 2011, que permitia o casamento entre homossexuais.
Quando soube, pela televisão, enquanto sua cabeleireira ajeitava seu penteado, que ele havia sido escolhido como novo papa, decidiu viajar a Roma. "Apesar de havermos tido tensões", diz, "somente um ignorante poderia pensar que tínhamos uma relação estremecida".
A verdade, escreve Cristina, é que havia um estranhamento na época em que Néstor Kirchner era o presidente. "Os homens têm um conceito de exercício de chefia totalmente diferente de nós, mulheres, e isso se pode observar tanto em um religioso, como Bergoglio, quanto em um laico, como Kirchner. As demonstrações de poder para os homens têm uma simbologia diferente. Eu não tenho nenhum problema em que o outro pareça ter mais ou menos poder que eu", escreve. Já o marido não pensava o mesmo. "Todos nós dizíamos ao Néstor: 'Você precisa ir ver Bergoglio'. E ele respondia: 'Não. Ele que venha à casa de governo'. [...] Era uma questão de poder."
Francisco e Cristina se encontraram algumas vezes na Casa Santa Marta, na Basílica de São Pedro, no Vaticano. Em um desses encontros, o papa queria saber o que ela achava do presidente russo Vladimir Putin. "Você precisa conhecê-lo", respondeu Cristina. "Você vai ficar encantado, tem uma visão histórica e estratégia. Não é pouca coisa."
Feminista, contra e a favor do aborto
"Eu era uma pessoa que dizia 'não sou feminista, sou feminina'. Que estupidez imensa e que lugar comum." Foi a filha, Florencia, 29, que ensinou a mãe a se assumir a favor dos direitos das mulheres.
O nascimento de suas netas, Elena, 4, e Emilia, 3, também motivaram uma mudança de visão. No livro, diz que pensar nas duas a fez votar a favor de um projeto no Senado, em 2018, que previa a legalização da interrupção de gravidez. "Comecei a pensar: dentro de 15 anos, vou ter 80, vou ser uma velha, vão perguntar a elas [suas netas]: 'Como votou a sua avó?', E elas vão responder: 'Votou contra'. Isso eu não vou permitir, não, não, de maneira alguma. Não estou disposta a ser lembrada de maneira ruim pelas minhas netas." O projeto acabou arquivado após ser rejeitado pela maioria dos senadores.
Apesar do posicionamento no Congresso, afirma não concordar com a prática: "Sigo não sendo a favor e nunca pratiquei".
A falta que Néstor faz
No segundo mandato, em 2011, Cristina diz ter sido tomada por "sentimentos contraditórios". "Por um lado, sentia alegria em assumir um novo mandato com um vasto apoio popular. Por outro, me habitava a tristeza profunda de não estar acompanhada de Néstor. Ele havia colocado em mim a faixa presidencial quatro anos antes." O marido havia morrido em 2010, vítima de uma parada cardíaca.
"O que mais me faz sentir falta de Néstor é não ter, até hoje, uma pessoa com quem conversar e ter discussões profundas. Sei que pode soar mal, mas é a verdade: o que podia sentir e ter dessas conversas com ele nunca mais encontrei com ninguém. Além de ter sido meu companheiro e o pai dos meus filhos, Néstor foi meu melhor amigo."
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