'Já é uma alma', diz militante em ação contra aborto em hospital de SP
Em frente ao hospital Pérola Byington, região central de São Paulo, uma tenda é ocupada por um grupo de quatro pessoas sentadas embaixo de cartazes. As imagens balançam com o vento soprado pela avenida movimentada à frente e exibem reproduções de fetos, bebês e frases de efeito. A ideia do grupo é permanecer ali por 40 dias em reza pelo fim do aborto. Entre os dedos dos ocupantes há terços. Nos pescoços, cruzes. Sobre uma pequena mesa de plástico, uma Bíblia.
A campanha "40 dias pela vida" é uma iniciativa importada dos Estados Unidos para uma quarentena de reza contra o direito à interrupção de gestação. A ideia, dizem, é simular o período de 40 dias de tentação de Jesus no deserto, como narrado pela Bíblia. Criada por católicos conservadores americanos no Texas, já foi reproduzida em países como Canadá e Inglaterra.
O local escolhido no Brasil é estratégico. O hospital Pérola Byington é referência nacional em atendimento à mulher e costuma ser indicado para a prática de abortos seguros e permitidos por lei. Entre 2015 e 2019, cerca de mil procedimentos de abortos legais foram realizados no hospital.
O desejo do grupo é que a gestante estuprada, ou que corre risco de vida, atravesse a avenida Brigadeiro Luís Antônio e mantenha a gravidez indesejada. À mulher é oferecida uma reza e a sugestão para que o futuro bebê vá para o sistema de adoção. O grupo se reveza. Vai de manhã até a tarde. Grupos católicos costumam acender velas e fazer orações em latim durante a noite.
"A gente defende que vida começa na concepção", diz Maurício Nunes, único homem presente no grupo formado por quatro pessoas. Ele é missionário e defende que, "cientificamente", a concepção começa dez minutos após a fecundação. Dali em diante, interromper a gestação pode gerar danos e problemas psiquiátricos. "Ajudei uma mulher a fazer aborto há oito meses e ela ficou perturbada", explica.
A defesa pela "vida desde a concepção" é um mantra evocado nos últimos cinco anos em projetos de lei para dificultar ou proibir o aborto em qualquer situação. Sem evolução desde Getúlio Vargas, a legislação brasileira não permite o aborto. O que existe são exceções: quando a mulher é estuprada ou corre risco de vida. Nestes dois casos, o Código Penal não pune a gestante. Desde 2012, também é permitido que se aborte fetos anencéfalos após uma decisão do Supremo Tribunal Federal.
Nos Estados Unidos, a "40 dias pela vida" faz uma ofensiva para proibir o acesso ao aborto nos estados americanos. Nos estados do sul, historicamente conservadores, já há leis em vigor que dificultam ou proíbem o procedimento. A fundação criada pelo norte-americano Shawn Carney chama de "crise mundial do aborto" e já diz ter salvo mais de "14 mil bebês" que não nasceriam sem a intervenção do grupo.
Em nota, o hospital Pérola Byington afirma que a atividade em frente ao hospital não interferiu na rotina de atendimentos do hospital. A instituição acrescenta que tem aprimorado o atendimento a vítimas de violência sexual em parceria com instituições como o MPF (Ministério Público Federal). Nas redes sociais, a campanha chamou o hospital de "moedor de brasileirinhos".
A participante Miriam Malto defende que a reza no Brasil é motivada por iniciativas para aumentar as exceções ao aborto no país. Entre os exemplos, cita discussões para descriminalizar o aborto em caso de fetos com suspeita de microcefalia. O tema sofre resistência entre parlamentares e é discutido em audiências no Congresso e também no STF, onde a descriminalização do aborto foi tema de uma audiência pública no ano passado.
Moradora da região sul, Miriam cruza um trajeto com mais de uma hora para chegar até a tenda no centro da cidade. "Há muitos relatos de mulheres que sofreram estupro e decidiram manter e estão felizes hoje", diz. Com os dedos entrelaçados por um terço católico, ela diz que sabe a sensação de um aborto. Há alguns anos, sofreu um aborto espontâneo. "É como perder um filho", relembra. "Fala-se que nós não pensamos na mulher. Não é verdade. Nosso lema é: salve duas vidas", diz.
Ela se levanta da cadeira de plástico e leva às mãos à foto de uma santa italiana, a santa Gianna.
Segundo a Igreja Católica, ela é considerada santa das mães por, mesmo sob risco de vida, ter optado por manter a gestação. "Assim, consideramos que, caso esteja entre o bebê e a mãe, que se tenha liberdade para a escolha", diz. Próximo a um pote transparente, ela aponta para a reprodução de um feto rosa, entalhado em um pedaço de gesso. É uma espécie de brinde para sensibilizar quem pensa em tomar a via do aborto. "Representa um bebê de dez semanas. Veja: já tem as mãozinhas, as unhas, é formado. Já é uma alma."
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