Amor-próprio não basta: movimento de 'gordos radicais' vai além da estética
O movimento body positive tem muitas vozes: a cantora Preta Gil sempre dá um banho de autoestima ao publicar fotos de seu corpo fora do "padrão" e já declarou que temos que olhar o corpo gordo e achá-lo bonito. A dançarina Thais Carla — que está grávida e divulgou uma foto nua ao lado do marido recentemente — também é figura associada à aceitação do corpo gordo e de combate à gordofobia. Acontece que, na trincheira pelo fim do preconceito e da falta de acesso de pessoas gordas, há uma corrente que fala não só do amor-próprio.
Fora do Brasil, os ativistas se declaram "libertacionistas gordos" e não querem só falar de autoaceitação; são cobradas também ações que exterminem a discriminação sistêmica, no trabalho, nos relacionamentos, na vida comum, contra gordos. No Brasil, o termo dá lugar a palavras como "gordoativistas" e até como "gordos radicais".
"O libertacionismo gordo veio do termo que pegou nos anos 70 nos Estados Unidos sobre a liberação dos corpos. No Brasil, não tem um nome só. Mas converso em um grupo de Facebook em que nos intitulamos 'gordos radicais', porque somos os gordos que ninguém quer ouvir falar", explica a taróloga e militante antigordofobia, Rachel Patricio, que fala sobre o tema desde 2004.
Frente ao discurso de que "todos devemos nos amar, aceitar, se sentir bonitos", ativistas como Rachel rebatem: "A gente não deve beleza para ninguém".
O termo "libertacionismo gordo" apareceu recentemente em uma publicação da comediante e ativista Sofie Hage, no Twitter. A mestranda em Educação e jornalista Raila Spindola a traduziu para português. No texto, as duas denunciam que "a positividade corporal é boa, mas não resolve o problema".
"Eu não sou defensora do body positive, sou um 'libertacionista gorda". Eu não me importo se você ama seu corpo ou não, eu me importo em abolir a discriminação e abuso sistêmico que as pessoas gordas sofrem diariamente. Positividade corporal é boa, mas não resolve os problemas", diz o texto do tweet.
"Me identifiquei com a mensagem porque sou uma mulher gorda que se vê como uma pessoa normal, saudável e tão capaz quanto qualquer pessoa magra. E sou gorda, com todas as letras, não uma mina que veste 48 e parou de achar calça com tanta facilidade no shopping", avalia.
"Me achar bonita não muda o tamanho das catracas"
A lista de dificuldades de Raila, e de tantas mulheres que já ouviram até frases como "vai entalar", por conta da gordofobia, é grande. "Tenho dificuldade de encontrar espaço em locais públicos, de arrumar emprego, de chegar no hospital e ter maca para mim ou equipamento que atenda meu tamanho".
Para ela, o movimento body positive não contempla essas pautas. "Ele é algo bem legal para quem é padrão. Eu já me identifiquei com o body positive, até notar que as falas das pessoas envolvidas não eram sobre mim. A voz ali não é a minha, é de outras pessoas, que também têm o direito à manifestação, mas não me toca, não resolve nenhum dos meus problemas. Até porque eu vivo muito bem com o meu corpo", pondera Raila, que se identifica como "gordativista".
Para a escritora Cíntia Lira, os dois movimentos deviam andar de mãos dadas. Ela mesmo se identifica como militante body positive e anti-gordofobia.
"Eu me achar bonita não muda o tamanho das catracas dos ônibus, não vai fazer com que médicos parem de patologizar meu corpo, não vai fazer com que eu seja aceita em um emprego".
Por outro lado, a militância pela aceitação do corpo poderia ser mais eficiente na projeção na mídia corpos mais diversos, o que nem sempre acontece, diz a escritora. "A pressão estética que a mídia faz é muito grande, marginaliza corpos gordos, corpos negros, corpos com deficiência. E é a esses corpos que o body positive deveria servir. Mas só corpos mais próximos ao padrão midiático ganham visibilidade no movimento, são 'passáveis'".
Cíntia, entretanto, vê que a luta pela valorização do próprio corpo, do respeito à sua própria forma física está conectada a de busca por direitos das pessoas gordas. Falta, ainda, sair da pauta estética e ir para a de políticas públicas.
"O que acontece é que pessoas que não têm uma boa relação com o próprio corpo acham que não merecem um tratamento social digno, e é muito difícil lutar por direitos tendo essa percepção das coisas. Quando elas entendem que não são culpadas por essas opressões, se humanizam e passam a exigir direitos".
Body positive ajuda, mas deve ser politizado
Ataróloga Rachel Patricio reforça que parte de sua vida como uma pessoa gorda (da infância à fase adulta) a faz perceber que o movimento body positive precisa ser politizado.
Em 2016, quando foi ter seu terceiro filho, pesando 150 kg, chegou no hospital e ouviu da médica que não havia maca para a realização do parto. "Eu tinha feito o acompanhamento no hospital. Eles sabiam que eu existia, eu não engordei do dia para noite". Quando vai medir pressão arterial em atendimentos hospitalares, também precisa levar a faixa que consiga envolver seu braço.
Ela denuncia que são necessárias mudanças estruturais para que as pessoas gordas tenham seus direitos respeitados, o que, segundo ela, não é contemplado pela aceitação do corpo.
"Body positivity vem de uma coisa de identificar seu corpo, e é claro que é fundamental entender que seu corpo é válido, todo corpo é, com deficiência, gordos e magros. Mas sempre tive a sensação de que precisava mais", explica a ativista, que participava de comunidades nas redes sociais desde o início dos anos 2000, quando pessoas gordas trocavam informações sobre onde comprar roupa, dicas de acessibilidade.
"Eu entendo que a moda é acessibilidade também, não se pode sair pelado na rua. Mas nos próprios grupos as pessoas à época começavam a desenhar suas angústias, falavam de não passar na catraca, dos apartamentos serem pequenos".
Rachel diz, entretanto, que só agora questões como colocar uma modelo gorda na passarela ou ter um novo olhar para a moda com tamanhos 'plus size' entraram no mainstream.
"Aí, o body positive entra na lógica do capitalismo, com cooptação de pauta. Para quem fala sobre isso é um trabalho. Quem ouve ainda sai de casa e entala na catraca. Mas não podemos jogar a água do banho com o bebê dentro, o movimento body positive pode ser um degrau [de compreensão da militância], inclusive foi importante pra mim pra eu entender que era pouco [e precisava ir além]".
Quando homens entram na pauta?
Falar sobre aparência, afirmam as entrevistadas, está bastante associado à pressão estética que recai sobre as mulheres na sociedade. Mesmo porque o "padrão" é muito mais exigente para elas. "Homens, mesmo fora do padrão, têm mais passabilidade", comenta Cíntia.
Para Raila, entretanto, há uma diferença também nesse sentido entre as militâncias: a do recorte de gênero. "O body positive, voltado ao estético, é uma pauta feminista. O gordativismo não é uma pauta de gênero. Mulheres e homens são afetados pela gordofobia de forma parecida, menos, é claro, quando se refere também a gênero".
Não sou gordo. Dá para ajudar na causa?
A jornalista Raila Spindola explica que pessoas não-gordas também podem ajudar na luta. Primeiro, não atrapalhando.
"Não compare seu sofrimento com o de uma pessoa gorda, não diga que é gordo sem ser, não trate ser gordo como um sentimento (não existe 'se sentir gordo'), não fale frases como "estou imenso e preciso emagrecer já", "comi uma gordice", como se comer comidas gordurosas fosse um hábito exclusivo de pessoas gordas. Outras dicas: não trate pessoas gordas como doentes, "nem que seja com tom de preocupação".
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