Mulheres de presos narram saga por auxílio: "Meus filhos ficaram sem leite"
Presa por tráfico há um ano e cumprindo pena no regime semiaberto, no Rio Grande (RS), Fabiana, 44, dorme tranquila sabendo que o filho, de 11, não passa fome: o garoto teve direito ao auxílio-reclusão, no valor de R$ 1,3 mil. Esse benefício é pago a familiares de quem é preso. Mas, se a prisão acontecesse hoje, o garoto, que mora com a avó e uma tia por parte de pai, ficaria desamparado.
Isso porque uma mudança na regra para pensão, salário-família e auxílio para presos, em junho, fez com que o benefício passasse a ser liberado apenas para presos no regime fechado. A família de presos que passam para o semiaberto perde o direito ao auxílio.
"Com o valor que meu filho recebe, ele tem consulta psicológica, vai para a escola de van e ainda guardamos um pouco para a faculdade dele. Vai quase tudo embora no fim do mês. Se não fosse o auxílio, ele dependeria da aposentadoria da avó. As pessoas têm que entender que o dinheiro não vai para o preso. Eu nem vejo esse valor", ela explica.
O auxílio
Pela regra atual, o benefício é dado aos dependentes da pessoa presa no regime fechado. Até antes da mudança, incluíam-se presos no regime semiaberto. O preso não pode estar recebendo outro auxílio, como auxílio-doença, para que seu dependente receba esse benefício.
Mas, para garanti-lo, é necessário que a pessoa presa tenha contribuído para a Previdência Social por ao menos 24 meses.
Se o preso for posto em liberdade, fugir da prisão, ou passar a cumprir pena em regime semiaberto ou aberto, o benefício é encerrado.
O governo alega que a mudança serve para evitar fraudes. Segundo o portal Contas Abertas, baseado em informações da Secretaria de Previdência, em 2017 foram pagos 47.500 benefícios de auxílio-reclusão com valor médio de R$ 998,58. Naquele ano, havia cerca de 726 mil presos, segundo o Ministério da Justiça. Ou seja, o benefício foi dado a dependentes de 6,5% da população carcerária.
Segundo a Previdência, esses benefícios, dados em 2017, representa cerca de 0,1% do total pago em auxílios pela pasta. O Brasil tem hoje cerca de 812 mil presos, segundo o Conselho Nacional de Justiça, incluindo os que estão nos regimes fechado, semiaberto e os que cumprem pena em abrigos.
Dificuldade no acesso
O marido de Daci Melo, 35, trabalhou por dez anos como porteiro em Surubim (PE), sustentava os três filhos do casal, de 7, 11 e 14 anos, a mãe e os três irmãos com deficiência. Foi demitido em 2017 e preso por associação ao tráfico no ano seguinte. Enquanto ele ainda aguarda julgamento, ela se vira para pagar as contas com um salário mínimo que recebe como faxineira. O auxílio-reclusão lhe foi negado. O motivo: ele ficou 16 meses sem contribuir para a Previdência.
"Temos filhos e residência fixa. Revolta saber que ele nunca foi preso antes, trabalhou sem parar por dez anos, oito deles na prefeitura, e agora fico sem nada. E ninguém me ajuda", diz Daci.
Para quem contribuiu por dez anos ou mais para a Previdência, é possível garantir o direito ainda que o aporte tenha sido suspenso por até 24 meses. Esses prazos são acrescidos de 12 meses se a pessoa recebeu seguro desemprego, segundo o INSS.
Ou seja: Daci tem direito ao benefício e pode recorrer, diz a presidente do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário), Adriane Bramante.
"É preciso desconfiar da resposta do INSS. Neste caso [de Daci], vale procurar a Defensoria Pública ou a assistência social", orienta a advogada.
O especialista em direito penal pela USP João Paulo Martinelli endossa a explicação de Adriane e alerta ainda para a situação de vulnerabilidade das crianças que dependem do benefício do preso.
"Ninguém pode ser punido em nome de outra pessoa", diz o professor do IDPSP (Instituto de Direito Público de São Paulo).
Em nota, o INSS informa que cumpre exigências legais e leva em conta o tempo que a pessoa ficou sem contribuir e o tempo em que esteve trabalhando. O órgão explica ainda que o segurado pode recorrer administrativamente à Junta de Recursos, em até 30 dias após ser comunicado.
Preconceito
Lia tem 40 anos e seu marido é peruano e foi preso por tráfico há cinco anos, em Aquidauana (MS). Desempregada e com cinco filhos, entre 4 e 22 anos, para sustentar, ela tentou o benefício junto à Justiça. Não conseguiu porque ele não contribuía para a Previdência e ainda sofreu preconceito.
"Olharam para mim e falaram: 'O Estado já mantém seu marido na cadeia, agora vai querer que sustente a senhora e seus filhos também?'", ela conta.
Sem saída, Lia passou a trabalhar numa barraca de lanches de domingo a domingo, às madrugadas. Recebia R$ 45 por dia.
"Fiquei sozinha, sem comida e leite para meus filhos menores. A vizinha me dava quentinha e eu dividia com as crianças. Minha família me abandonou. Hoje, me viro vendendo salgado no presídio, fazendo unha, faxina..."
Apesar de não ter direito ao benefício, já que o marido não contribuía para a Previdência, Lia não deveria ter sofrido qualquer preconceito ao buscar informações.
"Dificultar o acesso ao auxílio-reclusão é preconceito. O benefício não é para o preso, mas para a família desamparada", diz Adriane Bramante. "Na minha opinião, essa mudança na regra nada tem a ver com fraude, até porque o auxílio é pago para um número muito inferior de pessoas do que o que teria direito."
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