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Por que consentimento é assunto para o almoço de família?

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Heloísa Noronha

Colaboração para Universa

03/11/2019 04h00

Quando uma pessoa, independentemente do gênero ou orientação sexual, diz não à uma cantada ou a uma proposta para transar, quem ouve deveria entender a mensagem imediatamente. E, mesmo quando algum motivo impede que o não seja dito, isso jamais deveria significar um sim. Infelizmente, essas situações são enfrentadas em sua grande maioria por mulheres, já que ainda persiste a crença equivocada de que o corpo feminino é público e que os homens têm "direitos" sobre as parceiras.

Como combater esse mecanismo que, muitas vezes, resvala na cultura do estupro? Falar sobre o tema —em casa, na mesa do almoço de domingo, onde for— é um bom começo. Confira três lições básicas que todo mundo deveria aprender e aplicar:

1 - Consentimento é um conceito que deve ser aprendido logo na infância

Isso faz com que a criança tenha condições de se defender de um possível abuso sexual. Segundo a psicóloga Thalita Martignoni, do Rio de Janeiro, é muito comum que os adultos não respeitem o não da criança, obrigando-a a cumprimentar parentes e amigos com beijos e abraços, mesmo a contragosto, só para passar a imagem de boazinha e bem educada. "Se ela é obrigada a ser tocada contra sua vontade, pode estar propensa a se calar futuramente diante de uma conduta abusiva de um adulto ou de uma criança mais velha", afirma.

Para Breno Rosostolato, psicólogo, educador sexual e cofundador do projeto de imersão para casais LovePlan, outra conduta fundamental é explicar, desde cedo, que o corpo da criança não pode ser tocado por qualquer pessoa. "Com uma linguagem simples e adequada à idade, o ideal é que os pais falem que somente eles, certos cuidadores e o médico devem tocar a criança ou ajudá-la a fazer a higiene. E, ainda assim, com cuidados. À medida que a criança for crescendo, é importante estimular a autonomia e a independência e conversar sobre limites nas relações", fala Breno. Ao respeitar o não da criança ao toque indesejado, os pais podem ajudá-la a construir um conceito de limite, de respeito ao próprio corpo e ao corpo do outro.

Os pais também devem ensinar a defesa do espaço pessoal e do consentimento para a criança. Se ela diz não e o amiguinho continua, ela deve dizer mais forte: "Pare!". "Se ainda assim não foi suficiente, ela deve empurrar, defender-se e, em casos extremos, pedir ajuda do adulto responsável", diz Thalita. "Precisamos ensinar em que situações a criança deve se defender. Ela deve aprender que se só um amigo está se divertindo e o outro está sofrendo, isso não é brincadeira."

2 - Repensar os valores machistas é uma questão de família

Para Thalita, outra mensagem essencial a ser transmitida em casa, ainda na infância, é o valor da mulher em contraposição a uma cultura extremamente machista. "É importante lembrar que ensinamos às crianças muito mais pelo exemplo do que pela fala. A leitura social é feita a partir das referências dos desenhos, dos heróis, dos contos de fadas e de como ela percebe a relação entre os adultos à sua volta."

Os valores machistas são difundidos na família e na comunidade. Para combater o problema, é preciso se dar conta desse problema estrutural e ressignificar crenças arraigadas que homens e mulheres carregam desde a infância. "Às vezes, isso acontece de forma sutil: o domínio passa despercebido em piadas, na banalização do corpo feminino, em letras de músicas que objetificam o corpo da mulher. Muitas vezes o sujeito nem se dá conta de que está reproduzindo a lógica machista em suas ações, pois entende que isso é natural", diz Thalita.

O que isso tem a ver com consentimento? É simples: o machismo torna difícil que muitos homens compreendam fatos básicos, como o de que toda mulher tem o direito de desistir de transar mesmo tendo topado previamente ou o de que, quando uma mulher acaba cedendo sob ameaça, pressão ou chantagem emocional, ela não consentiu absolutamente nada.

De acordo com a psicóloga Thalita, quando o consentimento da mulher é menosprezado, é possível observar uma manifestação de valores machistas, que perpetuam o domínio masculino nas estruturas do poder e que ocorrem de duas formas opostas: ora a mulher é representada como frágil, santa, recatada e que merece proteção e valor do homem; ora é representada como despudorada, depravada e sem valor, o que justifica o comportamento abusivo do homem. "O problema é que tanto em um polo quanto em outro a mulher tem seu poder de decisão menosprezado", diz.

"O fato de o homem atribuir à mulher uma conduta reprovável socialmente justificaria o seu comportamento abusivo. São aquelas frases clichês: ela provocou, estava usando roupa curta, não se dava o respeito. De toda forma, o domínio é mascarado, e o poder de decisão da mulher é controlado", diz Thalita.

Outras condutas abusivas são ratificadas socialmente e tão sutis que, às vezes, não se percebe que o consentimento da mulher está em xeque. É o caso de muitos homens que paqueram a mulher de forma agressiva, o que configura muito mais pressão para realizar o seu desejo do que propriamente uma cantada romântica. "Se uma mulher adota uma postura passiva e cede por medo ou por chantagem emocional, o seu consentimento não foi totalmente respeitado", diz a psicóloga.

3 - Ignorar o consentimento é crime

De acordo com Isabela Guimarães Del Monde, advogada, conselheira seccional da OAB-SP e cofundadora da deFEMde (Rede Feminista de Juristas), a única vez em que a palavra consentimento aparece no Código Penal é no Artigo 218-C que, entre outras condutas, estabelece como crime transmitir, vender ou expor fotografias, vídeos ou outro registro audiovisual que contenha cena de sexo, nudez ou pornografia sem o consentimento da vítima.

Já no crime de importunação sexual há a previsão da prática de ato libidinoso sem a anuência da outra pessoa, ou seja, sem o seu consentimento. "Entretanto, no crime de estupro, cuja redação atual é de 2009, a palavra consentimento não aparece. O que temos é o constrangimento de alguém, mediante violência ou grave ameaça, à conjunção carnal. Avalio, portanto, que a lei tem evoluído, por pressão das mulheres, a contemplar a anuência de consentimento como elemento fundante de qualquer violência sexual, embora ainda falte muita compreensão dos aplicadores da lei quanto ao consentimento", diz Isabela.

Sobre o estupro marital, a advogada Cátia Ribeiro Vita, sócia-proprietária do escritório CRV Advogados Associados, do Rio, explica que, em sua definição, ele só se difere do crime de estupro pelo grau de intimidade efetiva de quem o comete.

"O estupro marital se configura quando ocorre infringência sexual contra um dos parceiros, mesmo dentro de um relacionamento. Fazer com que uma relação sexual aconteça por meio de ameaça ou violência é o caso mais clássico hoje em dia, mas também pode ser considerado estupro marital forçar o sexo enquanto a vítima está inconsciente, seja dormindo, embriagada ou sob efeito de remédios", diz.

Isabela destaca ainda que, embora o Brasil conte com leis importantes e algumas até avançadas para a proteção e a garantia dos direitos das mulheres, ainda existem agentes da lei, como delegados, promotores e juízes, decidindo casos de violência contra a mulher com base em suas convicções pessoais de fé e moral e não de acordo com a lei e com pesquisas científicas sobre o assunto. "Por isso, se não investirmos em formação técnica sobre violência baseada no gênero para nossas autoridades, continuaremos com índices alarmantes de violência."