"Militância contra o aborto será cada vez mais visível", diz pesquisadora
Em frente ao hospital Pérola Byington, referência no atendimento a mulheres e na realização de abortos seguros dentro das condições permitidas por lei, em São Paulo, estão acampados, há dias, dois grupos. Um que pede o fim da garantia legal à interrupção de gravidez —hoje permitida em casos de estupro, risco de morte para a mãe e anencefalia do feto— e outro que se posiciona pela garantia desse direito.
A cena inusitada deverá se tornar cada vez mais comum, segundo a historiadora e mestra em estudos sobre mulheres, gênero e feminismo pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) Carla Gisele Batista. "Os grupos conservadores hoje formam militantes em diversos países. Então é possível que essa militância se faça cada vez mais visível no Brasil, assim como é atualmente nos Estados Unidos", diz Carla, que é ativista pró-legalização do aborto, em entrevista a Universa.
Autora do livro "Ação Feminista em Defesa da Legalização do Aborto: Movimento e Instituição" (Annablume Editora), lançado em janeiro deste ano e que faz um levantamento histórico da legislação sobre interrupção de gravidez, Carla pesquisa como o tema aparece na política institucional. Ou melhor, como é jogado para escanteio, mesmo entre os políticos que se dizem defensores dos direitos das mulheres e apoiadores de pautas progressistas.
"Existem parlamentares identificados à esquerda que se posicionam a favor, mas, de forma geral, não enfrentam o debate público. Nas campanhas, os candidatos estão mais preocupados com os resultados eleitorais do que com garantir direitos de saúde às mulheres."
Leia trechos da entrevista abaixo:
Fortalecimento da onda antiaborto
As manifestações dos grupos contrários ao aborto devem ficar mais evidentes, segundo Carla, apoiados no avanço evangélico e conservador dentro da política. "Os grupos conservadores fazem mobilizações, oferecem assessoria parlamentar e possuem recursos para se fortalecerem", diz. O exemplo vem de mobilizações que já existem, principalmente, nos Estados Unidos, onde 9 de 50 estados americanos criaram leis mais restritivas para a prática do aborto em 2019.
A religião é um fator decisivo para o fortalecimento do embate no Brasil. "Ainda que existam setores progressistas dentro das igrejas, o que predomina são os conservadores. Diversas denominações têm o governo federal como aliado e investem na recomposição do papel da mulher como a cuidadora não remunerada dentro de uma moralidade familiar. Querem que elas voltem para a submissão. Essa ideia tem fortes aliados nas igrejas neopentecostais", diz.
"Por outro lado, existe hoje uma geração de jovens mulheres que tem uma apropriação maior dos seus direitos do que teve a minha geração ou a de minha mãe."
A interrupção da gravidez no discurso político
A pesquisadora fala sobre como o tema ainda não faz parte do debate público no Brasil, uma vez que políticos, em sua maioria, se esquivam do assunto para evitar rejeição do eleitorado. "Pode até ser que estejam preocupados, mas grande parte para manter o controle sobre as decisões relacionadas à saúde da mulher, e não de garantir direitos a elas. E estão mais comprometidos com resultados eleitorais do que com um projeto de sociedade que seja realmente democrático."
Mesmo governos de esquerda, diz a historiadora, deixaram a desejar. "O governo Lula [2003-2010] criou uma comissão com o objetivo de rever a lei que criminaliza o aborto no país, em 2005. Houve, no entanto, um recuo diante da fragilidade imposta ao governo com o escândalo do mensalão. Daí em diante, os governos do PT se afastaram do tema. Com Dilma Rousseff [2011-2016], recuamos ainda mais nas políticas de saúde integral para as mulheres, com o esvaziamento da área técnica de saúde da mulher [do Ministério da Saúde]", diz.
Na comparação com outros países, Carla destaca o exemplo da Argentina. Em 2018, um projeto de lei que permitia o aborto em qualquer situação até a 14ª semana de gestação chegou a ser aprovado na Câmara dos Deputados, mas acabou sendo rejeitado no Senado. Apesar disso, é um tema presente no debate público no país vizinho. Foi, inclusive, um assunto recorrente nos debates entre presidenciáveis nas últimas eleições —o país escolheu o novo presidente, Alberto Fernández, no domingo (27). "Os posicionamentos contra e a favor foram apresentados com contundência pelos candidatos. Fernández, o candidato vitorioso, declarou, ainda em campanha, que tem como "decisão política" legalizar o aborto. O primeiro passo, afirmou, seria a descriminalização. "Com certeza algo mudará na Argentina a esse respeito", diz Carla.
O mesmo não aconteceu no Brasil nas eleições de 2018. O tema foi colocado em segundo plano e, fora após questionamentos da imprensa, a maioria dos candidatos não falou sobre o tema publicamente. Em reportagem do UOL, dos dez presidenciáveis consultados, oito se mostraram a favor da manutenção da legislação atual, e dois eram a favor da legalização.
Governo Bolsonaro
O cenário ideal, para Carla, seria garantir o direito ao aborto legalizado para todos os casos, com atendimento pelo SUS (Sistema Único de Saúde). "Para além do fato concreto da defesa do direito das mulheres interromperem uma gravidez inesperada, a legalização diz respeito à vivência da maternidade como direito e não como obrigação ou destino que as aprisione em seus próprios corpo. Diz respeito à liberdade para construir projetos para si mesmas.
A pesquisadora acredita que o Brasil já estaria avançando se criasse, pelo menos, uma legislação que incluísse educação sexual nas escolas e distribuição qualificada de métodos contraceptivos. "Mas não há qualquer anúncio governamental sobre esse tema. Todos os anúncios vão no sentido contrário", diz.
"Ter a ministra Damares Alves, que é uma representante de estratégia política moralmente conservadora, ocupando um ministério [da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] que foi conquista dos movimentos de mulheres é algo arrasador."
Perspectiva é de perda de direitos
"No campo do movimento em que atuo [do feminismo e ativismo pró-legalização do aborto], não vislumbramos no horizonte nenhuma possibilidade de ampliação de legislação favorável e, sim, a possibilidade de perdas de direitos", afirma a pesquisadora.
"Existem cerca de 41 projetos de lei na Câmara dos Deputados que tratam de temas relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos, não só do direito ao aborto. Destes, apenas 11 avançam nos direitos", explica. "Além disso, sabemos que, no quadro de posicionamento parlamentar, a maior parte atua de forma contrária."
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