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Não só Eva: conheça Lilith, a suposta (e feminista) primeira mulher de Adão

Barbara Eugênia interpretou a deusa em "O Despertar de Lilith" - Divulgação
Barbara Eugênia interpretou a deusa em "O Despertar de Lilith" Imagem: Divulgação

Heloísa Noronha

Colaboração com Universa

13/11/2019 04h00

Existem várias lendas a respeito de Lilith, deusa sumério-babilônica relegada ao papel de demônio na antiga religião judaica. Excluída da versão final da Bíblia, Lilith teria sido a primeira mulher de Adão, e não Eva.

Porém, se revoltou com o machismo do primeiro homem criado por Deus e foi embora. Como todo mito, há diversas informações — a maioria, evidentemente, sem comprovação. Veja, a seguir, curiosidades sobre essa deusa, tida como a primeira feminista por se rebelar contra normas patriarcais:

O mito de Lilith começou na Suméria, no sul da Mesopotâmia, onde atualmente se localiza o Iraque e o Kuwait. Seu nome vem da palavra "Lil", que significa "ar", mas o termo mais antigos associado a ele é Lili, de plural Lilitu, que quer dizer "espírito". Na antiguidade, expressões associadas ao ar e ao sopro também era utilizadas para "espírito".

Sua imagem muda de cultura para cultura, sendo que a associação com poderes demoníacos foi ganhando força à medida que valores patriarcas passaram a dominar a cultura. Em princípio, foi uma deusa muito cultuada na Mesopotâmia e comparada à lua negra, à sombra do inconsciente, ao mistério, ao poder, ao silêncio, à sedução, à tempestade, à escuridão e à morte.

Lilith foi frequentemente representada com cabelos longos, asas, corpo curvilíneo e sensual e pés em forma de garras de coruja. Na maior parte das vezes, surge em gravuras antigas sem roupas para representar sua natureza selvagem e indomável. Em outras, aparece sobre um leão e com uma coroa da realeza sumeriana.

Segundo as lendas do folclore hebreu medieval, Lilith rejeitou Adão quando ele tentou forçá-la a ocupar uma posição mais submissa, não só no relacionamento entre os dois como no sexo. Todas as vezes em que os dois transavam, Lililth reclamava de ter de ficar por baixo. Para ela, ambos deveriam ter direitos iguais, já que tinham sido criados da mesma forma — ou seja, feitos com o mesmo barro.

Adão, porém, se recusava permitir que ela o montasse, argumentando que não deveria ser mudada. Cansada de lutar em vão por igualdade, Lilith se revoltou: amaldiçoou o parceiro e, com seus poderes mágicos, voou para o Mar Vermelho. Ou seja, Lilith rebelou-se contra a "superioridade" masculina de Adão, o que a torna uma figura problemática para o judaísmo e para o catolicismo, religiões patriarcais.

De acordo com o "Talmud", uma coletânea de textos sagrados do judaísmo rabínico de viés satírico, Lilith foi criada por Deus da mesma forma que Adão — exceto que, em vez do barro, as mãos divinas usaram lodo e fezes para moldá-la, materiais que comprovam o teor misógino e machista da obra.

Ainda de acordo com essas lendas, registradas no controverso livro "O Alfabeto de Ben-Sirá", após abandonar Adão ela teria copulado com vários demônios e tido filhos com eles. Para levá-la de volta ao Éden, Jeová enviou seus anjos Sanvi, Sansavi e Samangelaf para convencê-la, mas Lilith recusou. Diante disso, Jeová decidiu criar Eva para fazer companhia a Adão. Para fazê-la mais dócil e obediente, a tirou das costelas do primeiro homem. Lilith, então, transformou-se numa serpente e enrolou-se na Árvore do Conhecimento para tentar mostrar a Eva a importância de buscar sua liberdade. Eva, então, comeu o fruto e cometeu o chamado "pecado original".

Os anjos enviados por Jeová repreenderam Lilith matando seus filhos. Como não podia vencê-los, a deusa concordou não se aproximar de nenhum bebê que fosse protegido pelo amuleto com os nomes dos anjos Sanvi, Sansavi e Samangelaf — isso porque, conforme algumas crenças, Lilith era considerada uma devoradora de crianças recém-nascidas. O curioso é que, em princípio, Lilith trazia bençãos para os bebês. As religiões patriarcais a transformaram numa vilã e exemplo das consequências de uma mulher ter a sexualidade livre e desobedecer o marido.

Segundo Roberto Sicuteri autor do livro "Lilith, A Lua Negra" (Ed. Paz e Terra), houve uma transposição da versão javista da Bíblia para a versão sacerdotal. Foi aí que a lenda de Lilith teria sido eliminada da Bíblia, fazendo todos crerem que foi Eva a primeira mulher, mas em Isaías 34,14 ficou um indício sobre Lilith quando "animais noturnos" são mencionados. Em algumas edições, no capítulo II do Gênesis, uma companheira idônea é mencionada no texto. Quando o primeiro homem vê Eva, ele diz: "Esta, sim, é osso dos meus ossos", o que evidencia a possibilidade de Lilith ter sido criada anteriormente. No entanto, é válido saber que tanto o Gênesis quanto Isaías são textos antigos, de origens incertas, que passaram por diversas traduções e não contam com versões "definitivas".

Os povos antigos também acreditavam que escutar o grito de uma coruja era sinal de que Lilith estava por perto. Um de seus nomes, aliás, era "Grito da Coruja" por simbolizar o clamor e os desejos de todas as mulheres por igualdade.

Entre os católicos, sua imagem ganhou popularidade a partir do crescimento dos estudos de demonologia, a partir do século XIV. Sua representação a relaciona tanto com as sereias gregas quanto com as aves noturnas. É aí, também, que nascem os mitos de "mãe dos vampiros" e de "bruxa". Até o século XIX, Lilith ainda era tida como um demônio e encontram-se vestígios dos feitiços de proteção utilizados contra ela.

Como a deusa grega Hécate, Lilith é tida uma patrona das bruxas. Porém, é visualizada como uma feiticeira atraente e sedutora, uma "femme fatale", a personificação do poder feminino e misterioso da Lua.

Conecte-se com Lilith

Segundo a filosofia Wicca, Lilith pode ser invocada para pedidos envolvendo sensualidade, sexo, magia, poder, força, igualdade, sabedoria, prazer e sedução. Além da coruja, outros de seus símbolos são o salgueiro, a lança, a serpente, pedras furadas e a pérola negra. As plantas correspondentes aos poderes de Lilith são o lírio e o estragão. É possível utilizá-las através de essências, óleos aromáticos, banhos, pós, incensos, talismãs ou simplesmente para enfeitar a casa.

Para se conectar com esse deusa, o sacerdote wiccano Claudiney Prieto recomenda ungir a pérola negra com o sumo do estragão numa segunda-feira de lua nova, pedido que ela traga as bençãos da sensualidade. As cores de Lilith são vermelho, preto, cinza, lilás e branco. Os seguidores da Wicca, aliás, são os responsáveis pelo resgate da antiga valorização de Lilith como deusa pagã e símbolo de independência, rebeldia e da luta das mulheres contra o patriarcado.

A cultura pop volta e meia menciona Lilith. Na série "Supernatural", cuja última temporada vem sendo exibida no Brasil pela Warner Channel, ela foi criada por Lúcifer, anjo criado por Deus que se rebelou contra o criador, tem os olhos brancos e surge inicialmente como uma doce garotinha. Outro exemplo é o filme de vampiro cult "O Despertar de Lilith" (2016), em que a cineasta brasileira Monica Demes usa a mitologia da deusa para contra a trajetória de libertação sexual de uma mulher com um casamento infeliz vivida pela cantora Bárbara Eugênia.

Livros consultados: "Enciclopédia da Bruxaria" (Madras), de Doreen Valiente; "História da Bruxaria" (Ed. Goya), de Jefrrey B. Russel e Brooks Alexander;
"O Livro Ilustrado da Mitologia" (Publifolha), de Philip Wilkinson; "Todas as Deusas do Mundo - Rituais Wiccanianos para Celebrar a Deusa em suas Diferentes Faces" (Ed. Alfabeto), de Claudiney Prieto