Na periferia de São Paulo, cultura da várzea impulsiona o futebol feminino
O Complexo Esportivo do Campo de Marte, um gigante centro "varzeano" na Zona Norte de São Paulo, está bastante acostumado a receber homens boleiros. Mas hoje é dia delas. Lá acontece nesta sexta o Festival Feminino de Várzea, com 60 equipes. E isso é reflexo do aumento dos coletivos de futebol feminino na capital paulista.
"Hoje vemos uma menina passar segurando sua chuteira e usando uniforme, algo que não acontecia quando comecei", diz Aline Pellegrino, que dentre outros destaques no currículo já jogou pelo São Paulo, pela Seleção Brasileira e agora é diretora de futebol feminino da FPF (Federação Paulista de Futebol).
Para colocar alguns dados que mostram essa evolução, Aline cita uma peneira recente que a FPF fez, no embalo do Paulista Feminino Sub 17. Na ocasião, a federação fez um um censo para entender melhor as jogadoras e descobriu que a maior parte das meninas que estavam ali jogavam em times mistos de meninos e meninas (62%), enquanto outros 25% jogavam em times só de meninas. Algumas dessas atletas, 13%, eram as únicas mulheres em times masculinos.
Embora esse seja o primeiro censo e não existam dados comparativos, Aline explica que eles corroboram algo que já era uma sensação no setor. Cada vez mais as meninas estão deixando de jogar só com meninos, indo para times mistos e encontrando em seguida os exclusivamente femininos. "Isso é muito positivo, pois mostra que há uma transição natural nesse cenário", diz a diretora da FPF.
Na perifa, toda uma liga
A evolução do futebol feminino na periferia de São Paulo pode ser percebida por meio de histórias pessoais. A própria Aline nasceu no Jardim Peri, Zona Norte de São Paulo, bem antes do atacante Gabriel Jesus. Era 1982, ano em que a seleção brasileira masculina foi eliminada da Copa do Mundo pela Itália, no jogo conhecido como Tragédia do Sarriá. Talvez por isso a vontade de fazer bonito no esporte tenha brotado. "Dos 6 aos 12 anos, só joguei em times de meninos. Só após os 12 que encontrei o primeiro time exclusivamente feminino", conta. Aos 14, veio o primeiro contrato profissional, no São Paulo.
Já em Parelheiros, na zona sul, um dos times que fazem sucesso é o Perifeminas. No começo, um grupo de mulheres da região fazia jogos contra times masculinos, mas com todos vestidos "ao contrário". "Era uma brincadeira. Mas o desconforto dos homens em jogar com saias e leggings, com o olhar de estranhamento entre eles, acabou criando um espaço de diálogo", conta a zagueira Sidinéia Aparecida Chagas.
O grupo de mulheres foi crescendo e desde 2016 virou um time que joga todo domingo. "Conquistamos um novo espaço", acredita. Hoje, são aproximadamente 15 meninas e mulheres, de 9 a 39 anos, que estão lá por motivos que vão desde lazer até a busca de um sonho.
Em Parelheiros surgiu a Liga Feminina de Futebol Amador. Quem conta essa história é a corintiana Maria Amorim, diretora da liga e zagueira do Apache, outro time com equipe feminina de Parelheiros. "A união que conseguimos nos ajuda a abrir novos espaços na cidade para o futebol feminino", explica.
Não que isso seja fácil. Maria notou, por exemplo, que ultimamente mais donos de campos querem ceder horários para mulheres jogarem, o que é muito positivo. "Mas quando vamos conversar, querem oferecer horários no meio da tarde de domingo, depois dos homens, e ignoram que as mulheres também querem estar com suas famílias", aponta.
Na liga, hoje são 100 equipes atuantes, espalhadas pela capital, interior e grande São Paulo. Os campeonatos também não param de crescer.
Bola no pé por toda a cidade
Se na periferia de São Paulo, a cultura da várzea deu um impulso a mais para o futebol feminino, fora dela, quadras de futsal e de society (com grama sintética e medidas específicas), antes restritas a boleiros, também começam a ser conquistadas.
Um dos grupos que domina o espaço é o Joga Miga. No começo, lá em 2015, era assim: uma turma que já batia bola há um tempo se reuniu com o nome Miga F.C. Ignorando impedimentos, elas cresceram tanto que hoje têm um super projeto: diversas turmas na cidade de São Paulo, uma subsede em Barueri (SP) e outra em Belém do Pará.
O Joga Miga é um projeto que vai além dos treinos. Outra ação é um mapa interativo para qualquer mulher encontrar o time, escolinha ou coletivo mais próximo de sua casa e começar a treinar. "Comecei a desenvolver o mapa quando percebi que o que não falta em São Paulo é mulher querendo jogar", diz Nayara.
Ela conta que existe um cuidado para que todas as mulheres estejam seguras. Quando um novo coletivo ou time se cadastra, antes de ser liberado no mapa, existe uma checagem nos contatos e nas redes sociais para garantir grupos ponta firme.
São Paulo reúne, por enquanto, a maior parte deles: 47 dos cerca de 100 grupos no total. Um exemplo que figura por ali é o FC Internazionale Di Mooca, time de futebol society amador da Zona Leste, com equipes femininas e masculina.
A lateral direita Marina Galante é uma que dizia "nunca vou jogar". E de tanto assistir aos treinos do filho na escola, hoje diz para a reportagem: "Meu final de semana é movido a futebol".
A expansão chamou a atenção da Nike. A marca hoje apoia diversos projetos de esportes femininos. "São mulheres de diversos bairros e zonas de São Paulo, que se encontram semanalmente para dividir a paixão pelo futebol ou, simplesmente, para ter sua primeira experiência com o esporte", diz Martina Valle, diretora da Nike para mulheres.
Na base do grito: da torcida, também se conquista espaço
Quem ama futebol não resiste a um estádio. "Queremos servir de apoio para incentivar cada vez mais mulheres a ir aos jogos, entrar no estádio e tornar esse lugar mais acolhedor", diz a são paulina Bruna Nascimento Gusmão, uma das integrantes do São PraElas.
A torcida feminina do São Paulo começou a se unir em 2017. Hoje são mais ou menos 800 garotas que participam dos grupos de WhatsApp, separados por região, para que ninguém precise chegar sozinha ao Morumbi em dia de jogo.
É uma linha de pensamento bem parecida com a das palmeirenses do VerDonnas, que também usam o WhatsApp como um dos principais meios de comunicação. Uma vez que o Allianz Parque, casa do Palmeiras, está numa região cercada de bares em São Paulo, é num deles que elas combinam o encontro pré-jogo, para entrarem fortalecidas em grupos, como conta Tainá Shimoda. "A cidade é para ser vivida, e nosso grupo encoraja mulheres a fazerem isso de uma maneira mais ativa e leve", diz.
Na torcida da mulherada corintiana, a união vai para além dos dias de partidas. O movimento Toda Poderosa Corinthiana começou a ser moldado em novembro de 2015, quando um grupo foi convidado para dar uma palestra dentro do clube. "Percebemos que não havia registro da história da mulher no clube, mesmo com tantos fatos interessantes", diz Analu Tomé, uma das organizadoras do coletivo.
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