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Fafá de Belém: "Julgar mulher que não se comporta como você é caretice"

Cantora fala sobre política, aborto e redes sociais - Miro/Divulgação
Cantora fala sobre política, aborto e redes sociais Imagem: Miro/Divulgação

Camila Brandalise

De Universa

25/11/2019 04h00

O pedido de um diretor de gravadora para que ela emagrecesse 10 kg antes de assinar o primeiro contrato, na década de 1970, fez Fafá de Belém chorar de ódio:. "Eu disse que vim para cantar, não para ser vedete do rebolado".

Fechou com outra gravadora, manteve o manequim 46 —"a mulher que não veste 40 é rara na televisão, nas revistas. Ah, vai pra porra!"— e a admiração pelo próprio corpo. "Sou uma mulher bonita e sei disso", diz, com a voz firme.

Salienta que o preconceito a acompanhou ao longo dos 43 anos de carreira, mas mais por sua origem do que pelo gênero, acredita. "Quando cheguei, perguntavam: 'Onde fica isso?'", afirma, pesando no tom para expressar o deboche de quem questionava de onde vinha o apelido. "Carregar Belém no nome é um orgulho." Em abril deste ano, a cantora lançou o 26º álbum da carreira, "Humana", e acaba de retornar de uma turnê de shows por Portugal.

Na entrevista a Universa, ela fala também de redes sociais e de ter virado meme. "Acontecer isso aos 63 anos é tudo o que se quer." Defende a descriminalização do aborto e critica o uso do termo empoderamento. "Não gosto. Às vezes, falam da boca para fora, tem muita hipocrisia. Mulheres têm que estar juntas contra a violência, mas julgar outra porque ela não se comporta como você eu acho uma caretice." Entre temas sérios e brincadeiras, o riso rasgado, uma de suas marcas registradas, também aparece: "É o que me ajuda a sobreviver".


O Brasil vive um momento de tensão política e social. Dá para continuar gargalhando?
Dá. Dou risada para sobreviver quando vejo o noticiário. Está muito punk. Achei que fosse só no Brasil, mas não. É muito preconceito, muita violência e ignorância no mundo todo. Hoje qualquer pessoa que demonstra interesse pelo social é comunista. Também converti em gargalhada o bullying, que é uma constante na minha vida.

Quais situações de bullying já viveu?
Quando vim de Belém para São Paulo, lá atrás, o preconceito contra mim não era por ser mulher, era por ser do Norte. Me perguntavam: "Onde fica isso?" Mas também porque eu não tinha manequim 40, mas 46. Até hoje isso é uma violência. A mulher que não tem manequim 40, que veste 44, 46, 48, é rara na televisão, nas revistas. Ah, vai pra porra! Sempre sofri isso, nunca fui magra. Também nessa época, havia possibilidade de assinar com uma gravadora, e me disseram que antes tinha que emagrecer 10 kg. Tinha 17 para 18 anos. Comecei a chorar de ódio e disse: "Eu vim para cantar, não sou uma vedete do teatro rebolado". Assinei com outra.

Acha que o protagonismo na música brasileira ainda é masculino?
Não. O Brasil é um país de vozes femininas. Mas, em várias situações, quando se fala de cantoras brasileiras, não me citam. Isso é um desrespeito. Não sei fazer lobby, não pertenço a grupos. Na série "Os Dias Eram Assim" [da Globo, cuja história se passava durante a ditadura], editaram uma cena do Jornal Nacional em que eu cantava no Comício da Calendária [evento a favor das Diretas Já em 1984]. Tiraram a minha voz, me tiraram da campanha das Diretas. É bullying.

A senhora sempre foi exaltada por uma característica física além da voz: os seios fartos. Em algum momento se incomodou?
Não, nunca. Acho maravilhoso. Em 1970, lançaram um Fusca com farol maior, e os motoristas apelidaram de Fusca Fafá. Quando descobri que podia usar decote, foi uma libertação. Tinha 12 anos e vi um filme em que a Sophia Loren usava espartilho. Até então, eu usava sutiãs grandes, horrorosos. Pensei: "Yes, I can". Minha mãe, uma costureira maravilhosa, fez para mim. Na Amazônia, vemos o corpo com muita tranquilidade. Eu nem gosto de usar roupa, em casa não uso. Tem que cuidar com a janela.

Diria que é uma mulher empoderada, seguindo esse termo da moda?
Não gosto desse termo. Muitas vezes usam de uma maneira muito fake, falam da boca para fora. A ideia já existe há muito tempo, minha mãe era empoderada. Bicho, é como se tivessem descoberto agora. O importante foi na década de 1970, quando queimaram sutiãs, descobriram a pílula anticoncepcional. Ali, o pau comeu. Acho bacana que se pense sobre isso hoje, mas tem muita hipocrisia. O fundamental é o respeito para que outra mulher possa agir completamente diferente da gente. Tem quem não queira trabalhar para ficar em casa e criar os filhos, e ótimo. Mulheres têm que estar juntas contra a violência, contra o espancamento, mas julgar outra mulher porque ela não se comporta como você eu acho uma caretice.

Recentemente, a senhora virou um meme que tem viralizado: uma imagem sua de um vídeo de 2016 seguido da palavra "amada?". Queria saber se já viu e o que achou.
Eu a-mei [gargalha]. Já tem até aquele negócio... Como chama? Filtro. Meme é uma coisa popular. Eu tenho 63 anos, quase 45 anos de carreira, virar meme é tudo que se quer.

Qual sua relação com as redes sociais e a tecnologia?
Eu adoro. É um meio de comunicação direta. Não sei o nome das coisas, não sei fazer efeito ou usar filtro. Eu era enlouquecida pelo Twitter, mas aí veio o Instagram, com fotografia. No Twitter, às vezes eu entro, às vezes clico em um negócio errado [gargalha]. No Instagram, já sei até fazer stories sozinha. Minha neta me ensina. Uso o Instagram para falar de coisas do momento, e aí caem de pau em cima de mim. Não estou nem aí, sempre fui polêmica.

E aplicativo de paquera, já usou?
Deus me livre. Eu nunca saí para um bar para paquerar. Acho que as coisas acontecem, os encontros acontecem na vida real. Sempre vi, escolhi o alvo. A relação é química, é um clique. Pela internet, acho muito frio. Adoro internet, mas nada supera, para mim, o olhar que se estabelece ao vivo, até para amizade.

Em um de seus posicionamentos nas redes sociais, a senhora criticou um comentário da ministra Damares Alves dizendo que as meninas da Ilha de Marajó eram estupradas por não usarem calcinha. Como paraense, o que mais choca nesse raciocínio?
A falta de sensibilidade [da ministra]. O que nós precisamos é de políticas públicas. É uma região em que meninas são trocadas por alimento. Usam drogas para anestesiá-las, elas passam por 20, 30 homens, ganham um pacote de biscoito, leite. Tem que ter controle das balsas onde isso acontece. Essas crianças são vítimas da falta de cuidado. Foi uma falta de percepção da ministra e espero seriamente que reveja e faça algo por essas crianças. Quem faz tráfico de crianças precisa ser preso.

Também já se posicionou a favor da descriminalização do aborto. A senhora já fez um?
Meu amor, isso é uma questão de foro muito íntimo. Meu posicionamento é público, sobre questões públicas, é como posso contribuir para a sociedade. Entendo que tem que ter sensibilização social sobre o assunto. Defendo a descriminalização do aborto. Hoje, quem tem dinheiro vai e faz em uma clínica. Quem não tem acesso vai procurar o quê? As aborteiras. No Norte e no Nordeste é comum usar agulha de tricô, lavagem de soda cáustica. É uma questão de saúde pública. Nenhuma mulher diz: "Oba, vou fazer aborto". Não é um problema de final de semana.