"Comentários sobre golpe foram em cartas pessoais", diz curadora da Flip
A curadora da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a editora Fernanda Diamant, rebateu as duras críticas que o festival recebeu por conta da escolha da americana Elizabeth Bishop (1911-1979) como a homenageada da edição 2020. "Discordo totalmente desse retrato redutor que estão fazendo de Bishop", disse.
Para Diamant, os comentários da escritora e poetisa sobre o golpe militar de 1964, feitos numa carta íntima para um amigo alguns dias depois do evento, são uma questão "lateral" na imensidão de sua vida conturbada e obra literária premiada.
"Bishop nunca fez apologia pública ao golpe e isso nunca teve impacto em sua criação literária", disse Diamant à Universa. "É importante entender que o Brasil não foi o único alvo de suas reflexões. Ela era uma autora extremamente autocrítica. E olhava sua própria cultura com muita desconfiança."
A poeta foi uma das maiores vozes da poesia americana do século 20 e ganhadora de inúmeros prêmios, como um Pulitzer em 1956 e de um National Book Award em 1970. Ela é o primeiro nome estrangeiro a ganhar a homenagem nos 17 anos de Flip, e Diamant ressalta a importância de sua conexão com o Brasil.
A americana morou no país por quase 20 anos e teve sua obra fortemente influenciada por suas passagens pelo Rio de Janeiro, Petrópolis (RJ) e Ouro Preto (MG). Foi aqui que viveu seu grande amor, com a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares (1910-1967), e que escreveu muitos de seus 101 poemas.
Além disso, foi uma importante divulgadora de autores brasileiros no exterior, apesar de nunca poupar críticas à cultura e costumes brasileiros.
Entre alguns dos críticos da escolha de Flip, o escritor Joca Reiners Terron escreveu que, apesar de Bishop ser uma de suas poetas favoritas, "o timing [da Flip] não poderia ser pior", sugerindo que o governo de Jair Bolsonaro vive acenando para manobras autoritárias.
A autora portuguesa Alexandra Lucas Coelho chamou a escolha de "insultuosa", enquanto o escritor paulista Ricardo Lísias disse que vai boicotar o evento. Ruy Castro, colunista da Folha de S.Paulo, também criticou: "Serei favorável à Flip homenagear a Elizabeth Bishop no dia em que um festival literário americano homenagear a Cecília Meireles."
Golpe de 1964
Bishop elogiou o golpe de 1964 numa carta ao poeta americano Robert Lowell, traduzida para o português para uma matéria de 2009 da revista Piauí.
"Foi uma revolução rápida e bonita", escreveu Bishop ao amigo, quatro dias depois do golpe. "A suspensão dos direitos, a cassação de boa parte do Congresso etc., isso tinha de ser feito, por mais sinistro que pareça", continuou, duas semanas depois.
O texto e a tradução são de Otavio Frias Filho (1957-2018), então Diretor de Redação da Folha de S.Paulo e marido de Diamant. As cartas haviam sido publicadas num livro em inglês e seguem inéditas no Brasil.
A editora tem lembranças de quando Frias estava produzindo o material, numa época em que ele estava interessado em Carlos Lacerda, amigo íntimo de Lota e Bishop. Lacerda foi um dos principais articuladores do golpe e se voltou contra o regime militar dois anos depois.
"Otavio tinha o projeto de fazer a biografia do Carlos Lacerda", explica Diamant. "O livro com as cartas de Bishop é enorme, e ele fez esse recorte porque tinha interesse pessoal na relação dele com elas. Eu acho um assunto importante que tem que ser falado. Mas, do ponto de vista da obra da Bishop, é um comentário lateral."
Em entrevista ao "O Globo", o poeta carioca Paulo Herinques Britto, que traduziu para o português a obra da poeta, disse que os valores da americana refletiam os juízos de valor de sua companheira Lota, que a mantinha numa redoma de proteção excessiva. "Bishop não era, de modo algum, uma escritora politizada", disse Britto.
Nos EUA, Bishop era progressista, apoiava o Partido Democrata e o fim da segregação racial, explica o tradutor.
Por que uma estrangeira?
Sobre o fato de escolher uma estrangeira, Diamant nota que a decisão remonta à origem da própria Flip, fundada por uma inglesa, a editora Liz Calder, que viveu no Brasil e foi agente de muitos autores brasileiros.
"Precisamos pensar literatura como algo universal", disse. "Em nenhum momento abandonamos o olhar para o país e para a literatura do Brasil."
Ainda que a escolha de Bishop tenha sido por importância literária e relação com o Brasil, a curadora avisa que fazer a Flip é, sem dúvida, um ato político.
"Promover cultura no Brasil é uma postura política", disse. "Temos um governo que é anti-cultura, anti-ciência, anti-educação. E a Flip faz e sempre fez um movimento pela cultura, educação, com divulgação. Isso é político, sim."
"Homofobia e o machismo também são questões centrais no debate político hoje, mas os críticos não pareceram dar muita importância para isso", disse.
Ela também acredita que a intensidade do debate político no Brasil atual é algo que pode aproximar o leitor brasileiro da obra da americana. "Ela tinha uma relação de amor e ódio com o Brasil. Tenho certeza que muita gente se sente assim agora."
Flip foca em tradução
Bishop foi responsável por levar nomes importantes da literatura brasileira ao exterior. Traduziu para o inglês trabalhos de Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade. Também organizou uma antologia de autores brasileiros em inglês.
Por conta disso, a edição 2020 da Flip quer colocar a tradução no centro do debate. "Somos um país que se alimenta muito de literatura traduzida e isso nunca foi um assunto central na festa", disse a curadora. "Consideramos isso na escolha também".
Apesar de ter apenas 101 poemas publicados, Bishop foi uma escritora prolífica na sua correspondência com amigos, muita ainda inédita no Brasil. E o gênero epistolar também ganhará destaque na Flip 2020, que acontece entre 29 de julho e 2 de agosto, em Paraty (RJ).
Poeta do hemisfério
No Brasil, a editora Companhia das Letras lançou quatro livros de Bishop: "Uma Arte: As Cartas de Elizabeth Bishop" (1995), "Poemas do Brasil" (1999, fora de catálogo), "Poemas Escolhidos" (2012) e "Prosa" (2014). Outras obras estão previstas para o próximo ano, incluindo uma das várias biografias disponíveis em inglês sobre Bishop, "Love Unknow", de Thomas Travisano.
"Bishop virou uma poeta de todo o hemisfério", diz uma crítica do jornal "New York Times" de 2017, ao contar que a poeta adentrou uma nova cultura e linguagem ao se mudar para o Brasil, ampliando suas referências e experiências.
O editor da Companhia das Letras, Otavio Marques da Costa, disse à Universa que a curadoria da Flip é "soberana e independente". "Publicamos Elizabeth Bishop, com muita honra e há mais de vinte anos, pela alta qualidade de sua poesia", disse Costa.
"Discutir, durante o festival, sua complexa relação com o Brasil, suas posições políticas, ou mesmo a autonomia de sua literatura diante disso, pode ser interessante e oportuno, mas é uma decisão da curadoria."
O tradutor Paulo Herinques Britto escolheu para a Universa três dos seus poemas favoritos de Bishop, que publicamos a seguir, "O banho de Xampu", "Canção do Tempo das Chuvas" e "O Ladrão da Babilônia". O trabalho está no livro "Poemas Escolhidos" (2012).
A curadora da Flip conta que Bishop era uma perfeccionista e demorava muito para terminar seus poemas. "Não é uma poesia necessariamente fácil, mas é muito cheia de camadas e profunda", disse. "Ela guarda um certo distanciamento, tem uma impessoalidade e, ao mesmo tempo, é minuciosa. Seus poemas são capazes de viagens épicas."
2019 também teve polêmica e fake news
A cada edição, a Flip escolhe um autor para ser homenageado. Desde sua estreia em 2003, apenas brasileiros entraram na lista: foram 14 homens e três mulheres (Ana Cristina Cesar, Hilda Hilst e Clarice Lispector).
Neste ano, o escolhido foi Euclides da Cunha, com destaque para sua obra de "Os Sertões". E o evento não passou sem polêmicas: não só por conta de comentários raciais de Euclides, como também pela confusão causada por partidários do presidente Jair Bolsonaro numa mesa paralela ao evento oficial.
A Flipei, que tem uma programação independente da Flip, recebeu o jornalista Greenwald para uma entrevista, interrompida por fogos de artifício atirados pelos militantes na direção da mesa ao ar livre, num barco. Greenwald é cofundador do The Intercept Brasil, que revelou mensagens comprometedoras do atual ministro da Justiça, Sergio Moro, quando ainda era juiz da Lava Jato.
Com a escolha de Bishop, os militantes de Bolsonaro tiraram proveito da fala sobre o golpe para alavancar noticiário falso: o site Brasil 247 publicou uma nota afirmando que "o presidente Bolsonaro anunciou que fará a abertura da feira".
A organização da Flip reagiu em nota oficial, e o site se desculpou e tirou nota do ar. "A Flip nega que Jair Bolsonaro tenha sido convidado ou vá participar da Festa da Literatura Internacional de Paraty de 2020. As 'fake news' que circulam pelas redes sociais anunciando a presença do presidente no evento não têm nenhum fundamento", diz o comunicado divulgado para imprensa.
Poemas de Bishop selecionados por tradutor
O Ladrão da Babilônia
Nos morros verdes do Rio
Há uma mancha a se espalhar:
São os pobres que vêm pro Rio
E não têm como voltar.
São milhares, são milhões,
São aves de arribação,
Que constroem ninhos frágeis
De madeira e papelão,
Parecem tão leves que um sopro
Os faria desabar.
Porém grudam feito liquens,
Sempre a se multiplicar.
Pois cada vez vem mais gente.
Tem o morro da Macumba,
Tem o morro da Galinha,
E o morro da Catacumba;
Tem o morro do Querosene,
O Esqueleto, o da Congonha,
Tem o morro do Pasmado
E o morro da Babilônia.
Micuçu era ladrão
E assassino sanguinário.
Tinha fugido três vezes
Da pior penitenciária.
O Banho de Xampu
Os liquens -- silenciosas explosões
nas pedras -- crescem e engordam,
concêntricas, cinzentas concussões.
Têm um encontro marcado
com os halos ao redor da lua, embora
até o momento nada tenha se alterado.
E como o céu há de nos dar guarida
enquanto isso não se der,
você há de convir, amiga,
que se precipitou;
e eis no que dá. Porque o Tempo é,
mais que tudo, contemporizador.
No teu cabelo negro brilham estrelas
cadentes, arredias.
Para onde irão elas
tão cedo, resolutas?
-- Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia
amassada e brilhante como a lua.
Canção do Tempo das Chuvas
Oculta, oculta,
na névoa, na nuvem,
a casa que é nossa,
sob a rocha magnética,
exposta a chuva e arco-íris,
onde pousam corujas
e brotam bromélias
negras de sangue, liquens
e a felpa das cascatas,
vizinhas, íntimas.
Numa obscura era
de água
o riacho canta de dentro
da caixa torácica
das samambaias gigantes;
por entre a mata grossa
o vapor sobe, sem esforço,
e vira para trás, e envolve
rocha e casa
numa nuvem só nossa.
À noite, no telhado,
gotas cegas escorrem,
e a coruja canta sua copla
e nos prova
que sabe contar:
cinco vezes -- sempre cinco --
bate o pé e decola
atrás das rãs gordas, que
coaxam de amor
em plena cópula.
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