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Game over: por que acreditamos que o casamento é um sonho só das mulheres?

Noivo amarrado para casar: por quê? - iStock
Noivo amarrado para casar: por quê? Imagem: iStock

Ana Bardella

De Universa

03/12/2019 04h00

Começa com o pedido de casamento: o rapaz escolhe o momento, compra um anel de noivado e se ajoelha na frente da futura esposa. No dia da cerimônia, a noiva escreve o nome das amigas solteiras na barra do vestido para que elas tenham sorte e se casem também. Mais tarde, cortam o bolo: no topo, o boneco de um homem sendo arrastado até o altar. Por fim, o buquê é jogado para as convidadas: a moça que pega é considerada sortuda, mas o namorado dela vira piada entre os amigos. É o azarado. Game is over para ele também.

Topo de bolo - iStock - iStock
Já viu esse enfeite em algum casamento?
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Apesar de muitos casais optarem por outros tipos de cerimônia, ainda são recorrentes as tradições baseadas em princípios que inferiorizam a mulher, principalmente entre os casais heterossexuais. Bel Ornelas, de 41 anos, é consultora e produtora de conteúdo sobre casamentos. Na sua opinião, o machismo está nos detalhes: "É comum as crianças entrarem antes da noiva segurando plaquinhas escrito 'Foge não, ela tá linda' ou 'Ainda dá tempo de fugir', o que reforça a mensagem de que o homem está ali a contragosto", exemplifica.

Game over - iStock - iStock
Game over: casamento é o fim?
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Seguindo a mesma lógica, ela cita a brincadeira do noivo de escrever "socorro" na sola do sapato ou usar uma camiseta escrito "game over" durante a despedida de solteiro. "Na hora de jogar o buquê, já vi DJs chamando as mulheres de encalhadas, dizendo que estavam desesperadas. A tentativa é tornar o momento bem-humorado, mas me incomoda reproduzirmos estes discursos sem pensarmos sobre a origem deles", argumenta.

Ressignificação de símbolos

Michele Escoura, antropóloga, relembra que o mercado dos casamentos da forma como o conhecemos é recente no Brasil. "Antes dos anos 2000, esse tipo de serviço não era tão acessível para as classes média e baixa", diz. Hoje em dia, a especialista explica que itens como os elencados acima estão presentes em cerimônias de diferentes perfis socioeconômicos.

"Quando iniciei minha tese de doutorado [Fazer festa é uma guerra: relações entre vestidos, noivas, anfitriões e convidados na organização de casamentos], pensei que estes acessórios eram escolhidos pelos homens em uma espécie de zombaria ao casamento, como se estivessem sendo capturados por um grande inimigo: a noiva", conta. No entanto, durante a execução da pesquisa, constatou que, na maior parte das vezes, quem escolhe os objetos é a própria mulher. "Para muitas delas é uma piada, como se dissessem 'agora sou eu que mando'. Um momento de revanche", detalha.

Ou seja: no fundo, o mercado é quem lucra com a possibilidade de os itens serem vistos como uma brincadeira interna entre os casais. "Até porque o sonho do casamento não é somente feminino. O matrimônio também é desejado e representa uma grande mudança de vida para os noivos. Cada vez mais os homens participam das escolhas da festa e até disputam protagonismo, quebrando a ideia de centralidade que a sociedade coloca na figura feminina".

Bel complementa: "Quem adere às tradições não está, conscientemente, querendo ser machista". No entanto, relembra que se o casal se incomoda, é possível fazer pequenos ajustes nas cerimônias que transformam o momento sem perder o bom humor. Como exemplo, cita o momento de jogar o buquê: "Muitas noivas chamam homens e mulheres para pegar. Outras explicam que não se trata de saber quem será a próxima a se casar, mas de dividir um pouco da felicidade daquele momento. Só isso já dá um novo sentido ao ato, sem fugir da tradição".