"Ele dizia que queria me proteger": como o cuidado evolui para agressão
Christine Xavier tem 34 anos e é jornalista. Quando jovem saiu da casa dos pais em Sorocaba, interior de São Paulo, e veio morar sozinha na capital. Foi aos 28 anos que conheceu o ex-marido: ele trabalhava como segurança em uma casa noturna. Em uma noite de diversão com as amigas, os dois trocaram olhares, depois telefones e em pouco tempo estavam namorando. "Ele tinha um cuidado muito grande comigo. Era protetor, carinhoso, vivia na minha casa, se comportava como um príncipe. Era o relacionamento que eu tinha pedido a Deus", relembra.
Mas o envolvimento promissor se transformou completamente em questão de meses — e o sonho de Christiane se transformou em pesadelo. Chutes, empurrões, cuspidas na cara e outros tipos de agressões se tornaram parte da rotina da jornalista. "Quando me dei conta, tinha me afastado de todas as pessoas que se importavam comigo. A única pessoa que me oferecia conforto era também a que me humilhava e controlava", diz. Como ela, muitas mulheres já se viram presas em relações do tipo. "Quem não quer se sentir paparicada, amada, protegida?", resume.
Mas o que leva uma história de amor a se transformar tão rapidamente em estatística de violência doméstica?
Cortina de fumaça
Na opinião da psicanalista Andréa Ladislau, a sutileza é a principal ferramenta dos homens com tendências abusivas ao se aproximarem das mulheres. "Para ganhar a confiança das futuras parceiras, eles dizem exatamente o que elas querem ouvir. Fazem com que elas se sintam acolhidas", detalha. Já na opinião de Vanessa Paiva, advogada, psicanalista e diretora-executiva do Instituto Paiva, o cuidado aparece como artimanha para controlar. "Um homem verdadeiramente cuidadoso, ao notar que uma mulher está se colocando em situação de perigo, pergunta se ela deseja a sua companhia ou pensa em estratégias para diminuir os riscos da situação, mas sempre de forma conjunta. Já o abusivo não considera válida a opinião da companheira, apenas comunica que vai junto ou que ela não está autorizada a ir", exemplifica.
No caso de Christiane, o ciúme foi o ponto de virada do romance. "Com apenas três meses ele já se mostrava muito controlador. Mas eu não levava a sério, pois considerava que, com tão pouco tempo, ninguém era capaz de gostar de outra pessoa a ponto de sentir tanto ciúme assim. Por não dar importância, era permissiva. Trabalhava como repórter de um jornal de bairro e saía muito para fazer entrevistas, mas fui modificando a minha vida. Passei a fazer os contatos só por telefone. Fotografava minha rotina ao longo do dia e cortei contatos com amigas, pois ele não as considerava boas companhias. Não saía da minha mesa de trabalho para o caso de ele ligar; tinha que provar se estava em uma reunião ou parada no trânsito. Uma vez quase perdi o emprego pois fui obrigada a levá-lo para a redação do jornal durante um feriado, quando estava escalada para trabalhar", conta.
Do romance à tragédia
"As situações pioram progressivamente, uma vez que estes homens começam a demonstrar sua verdadeira personalidade. Em geral são pessoas de baixa autoestima e que usam de violência ou agressividade para se autoafirmar", aponta Andréa. Vanessa completa: "Neste ponto, a mulher já está envolvida e apaixonada. Os sinais de um comportamento abusivo costumam ser dados desde o início, mas muitas não percebem por falta de autoconhecimento. Projetam no outro uma imagem idealizada e não se dão o tempo necessário para saberem mais sobre seu histórico de vida e familiar. Não estão interessadas na forma como se comportaram nas relações passadas, nos seus valores. Não analisam se a bagagem de quem estão conhecendo é compatível com a bagagem delas".
"Simplesmente entram de cabeça, acreditando que está ali a chave para a felicidade. Por isso, chegam a ficar satisfeitas com o ciúme: acham que é sinônimo de amor, que agora finalmente estão sendo vistas e reconhecidas. E quando a situação degringola para a violência física, sentem dois medos: o de ficar e o de ir embora. Ao ficarem, sabem que estão em risco. Mas, se forem embora, podem perder todo o projeto de felicidade com o qual sempre sonharam. Por isso sentem uma vontade imensa de fazerem o agressor mudar, pois dessa forma o relacionamento voltaria a ser como era no início. Na fantasia delas, esta época era maravilhosa", detalha.
Para Christiane, o medo de perder o companheiro foi a principal motivação para ficar, mesmo depois de ser agredida. "Ele me controlava para não ter vida social. Se comprava uma roupa, era porque tinha um amante. Não podia fazer a unha ou o cabelo, porque isso era sinônimo de caçar homem. Se o meu vale refeição acabasse antes do esperado, tinha que justificar onde havia comido. Mas o que ele mais odiava era que eu ficasse longe. Tanto que na sexta-feira se transformava em outra pessoa: durante os fins de semana me levava café na cama, preparava as refeições, me dava todo tipo de mimo. Ficávamos grudados. Só que no domingo à noite começava o inferno"
"Quando chegava em casa, sofria empurrões, puxões de braço e cabelo, cuspidas e tapas na cara. Mas eu o considerava tão especial que não queria desapontá-lo, perdê-lo. Estava presa no ciclo da agressão: depois de me bater, ele dizia que estava nervoso, que teve um problema no trabalho, que tinha bebido além do ponto ou que a culpa era minha por ter dito ou feito algo específico. Com isso eu acabava voltando, perdoando".
Denunciar é a parte mais complexa
Entre o medo, a paixão e o desejo desesperado de fazer o parceiro mudar, vem a inércia. "Muitas mulheres enfrentam vergonha de se expor e não querem contar nem para os parentes ou pessoas mais próximas o que acontece dentro de suas casas", aponta Andréa. De acordo com a profissional, elas optam por continuar lidando com as agressões por não acreditarem que a vida lá fora pode ser melhor. "Mesmo cientes de que estão correndo risco de serem mortas, sentem que não podem ir embora pois isso seria acabar com a base de vida que construíram para si. Como projetam todos os seus desejos no companheiro, acreditam que só podem ser felizes ao lado deles, se forem capazes de fazer com que eles mudem", complementa Vanessa. Há também casos em que as mulheres são sofrem ameaças, têm seus entes queridos ameaçados ou que são dependentes financeiramente dos homens, o que dificulta ainda mais o rompimento do ciclo.
No caso de Christiane, foi difícil denunciar, mas o principal desafio veio depois. "Quando decidi formalizar a queixa, não imaginei que ele seria preso, mas foi o que aconteceu. Na hora, não pensei nas consequências. Mas ele passou cinco meses na cadeia e eu não conseguia me perdoar por isso. Seus pais estavam doentes, ele perdeu o emprego. Me sentia sozinha, achava que tinha feito uma coisa horrível. Ia na igreja católica e na evangélica em busca de perdão. Pedia dinheiro para os meus familiares para levar cigarros para ele. Durante os fins de semana, só chorava, não era capaz nem de limpar minha própria casa. Só resisti porque meus familiares me apoiaram e fui encaminhada para um ONG, na qual fiz alguns meses de psicoterapia".
Também movida pela culpa, Christiane decidiu continuar com o ex-parceiro uma vez que ele ganhou a liberdade. "Assim que ele saiu eu engravidei e nós passamos mais oito meses juntos", conta. A decisão de se separar veio porque continuou sofrendo violência doméstica. "Apesar de ele ser mais contido durante a gravidez, não aguentei e pedi o divórcio depois de sofrer um empurrão e cair de barriga no chão. Naquele momento, decidi que seria o fim de tudo", conta.
Recomeçar é preciso
Na opinião de Vanessa, o rompimento do ciclo passa pela mudança de mentalidade. Andréa concorda: "É preciso buscar ajuda, falar para as pessoas sobre o que está acontecendo". Além de denunciar formalmente o agressor, a mulher se sente mais amparada quando pode contar com a ajuda de familiares e amigos — e quando recebe ajuda psicológica. "Como foram vítimas de manipulação, estas mulheres precisam voltar a se sentir fortes, saber que têm voz e que suas opiniões, seus sentimentos e suas vontades importam", ressalta.
Christiane precisou voltar para a cidade dos pais. "Não foi fácil. Tinha o peso de uma gravidez não planejada e o trauma das agressões. Como ele não assumiu minha filha e não foi presente em nenhum momento, passei pelo puerpério sozinha. Foram meses muito solitários", conta. A volta para o mercado de trabalho aconteceu pela ajuda de outras mulheres. "A cidade é pequena, não tem muitos veículos de comunicação. Tive que me reinventar. Recebi a ajuda de colegas de profissão que me indicaram livros de assessoria de imprensa e até um cliente em potencial. A partir daí passei a atuar em outro segmento do jornalismo e consegui me reestruturar".
De lá para cá, Christiane namorou novamente, desta vez, em moldes saudáveis. "A parte mais difícil de me envolver com alguém era explicar por que sou mãe solo, por que minha filha não tinha contato com o pai. Mesmo sendo desagradável, nos aplicativos de relacionamento muitos homens se sentiam no direito de perguntar até se ela recebia ou não pensão alimentícia. Mesmo assim tive sorte, vivi um relacionamento saudável e consegui resgatar minha autoestima. Foi um amor diferente, que me fez acreditar que eu podia viver aquilo tudo do jeito certo. Estou solteira há dois anos, mas saio, brinco, converso com todo mundo. Tenho muitas amizades e tomo minha cerveja sem me preocupar com ninguém. Pode parecer bobo, mas essa liberdade para mim não tem preço".
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