Só 1 em cada 4 empresas ajuda funcionárias que sofrem violência doméstica
A paulistana Renata* viveu um relacionamento abusivo durante anos. "Ele ganhava mais do que eu e, por isso, pagava mais coisas. E jogava isso na minha cara. Qualquer coisa que acontecia, dizia: 'Pega suas coisas e vai embora'", ela diz. Os constantes episódios de humilhação culminaram em agressões físicas contra ela.
Quando finalmente Renata tomou coragem de se separar, o então companheiro não aceitou a dissolução da união estável, não quis dividir os bens com ela e ainda entrou com um processo de guarda dos dois filhos de cinco e nove anos —e conseguiu na Justiça a guarda unilateral das crianças.
"Minha baixa autoestima, por causa dos episódios e problemas relacionados ao meu ex, impactou minha vida profissional. Além de atender às expectativas do meu chefe, ainda tinha que corresponder às demandas e às pressões dos assuntos domésticos, inclusive enquanto estava trabalhando", diz Renata, que trabalhava na área de compras de uma empresa em São Paulo.
"Comentava com meu chefe as situações, mas acabei demitida. Só depois percebi que não era entendida. A abertura que existia era apenas uma curiosidade, que serviu para me rotular como funcionária problemática", diz Renata. "Óbvio que tudo isso é muito velado, mas as entrelinhas são essas."
Renata tinha também a nítida impressão de que o fato de ter compartilhado, no ambiente de trabalho, os abusos e violências domésticas que sofria a deixou mais vulnerável.
"Sabe aquela história de: 'Ela precisa muito do emprego, então vamos pressionar?' O fato é que nunca fui entendida ou acolhida", afirma a compradora. "Não existe departamento de recursos humanos para tratar desse tipo de assunto, nem um canal seguro para o diálogo, um lugar onde a mulher se sinta tranquila para expor esses abusos domésticos que podem impactar no crescimento profissional dela. A maioria dos líderes ainda é homem, então é delicado para a funcionária falar."
Tema não está na agenda de prioridades
Renata sentiu na pele o que mostra a pesquisa A violência e o assédio contra a mulher sob a perspectiva corporativa, realizada pelo Instituto Maria da Penha (ONG que reúne ações de combate à violência doméstica contra a mulher), pelo Instituto Vasselo Goldoni (de fomento ao empoderamento feminino) e pela consultoria Talenses, com apoio da ONU Mulheres. A amostra foi elaborada no segundo semestre deste ano e contou com a participação de 311 empresas que atuam no Brasil.
Os dados indicam que apenas 25% das empresas consultadas monitoram e atuam em casos de mulheres que sofrem com algum tipo de violência. Mais da metade, 55%, afirmaram que não contam com nenhum tipo de ação nesse sentido. As principais razões pelas quais as organizações não monitoram os episódios são o tema não estar na agenda de prioridades da companhia (33%), falta de apoio da liderança (12%) e dificuldade para mensurar e controlar casos do tipo (12%).
Todos os dados vão ajudar a alimentar a plataforma Rota VCM (Vida, Coragem, Mulher), que já está no ar. O objetivo do site é fortalecer a mulher e conscientizar a sociedade sobre os números alarmantes da violência de gênero, além de indicar instituições públicas e privadas nas quais as vítimas podem pedir ajuda.
Empresas só se preparam para lidar com assédio interno
"Os números não são positivos", afirma Carla Fava, gerente de comunicação, marketing e inteligência de mercado da Talenses. "Acredito que 75% das empresas ainda não estão estruturadas para oferecer o devido apoio às funcionárias vítimas de violência doméstica principalmente porque essa situação acontece fora do ambiente de trabalho. Quando falamos de assédio moral e sexual, que acontecem efetivamente nas empresas, 60% das companhias afirmaram possuir políticas e ações para o combate."
Para Carla, a comparação desses dados mostra que as organizações conseguem compreender de forma mais clara que, quando a violência ou o assédio acontecem dentro da companhia, aí sim é preciso criar ações de combate.
"No caso da violência doméstica, as situações acontecem no meio externo", ela afirma. "Essa distância faz com que as empresas tenham maior dificuldade de entender que esse é um problema com o qual precisam lidar e, por isso, não elaboram ações políticas para acolher essas vítimas."
De acordo com o Datafolha, 16 milhões de mulheres acima de 16 anos sofreram algum tipo de violência só no ano passado. Desses casos, 42% são de violência doméstica. A gerente de comunicação da Talenses afirma acreditar que seja um erro no âmbito social as empresas não darem atenção às situações que suas colaboradoras sofrem fora do ambiente organizacional.
"Não criar políticas de apoio às funcionárias vítimas de violência é, sem dúvida, fechar os olhos para um dos maiores problemas sociais do Brasil", afirma Carla.
"O Brasil é um país machista, racista, repleto de vieses conscientes e inconscientes, gerados principalmente por ainda vivermos em uma sociedade patriarcal que faz com que as relações de poder destinadas aos homens atrapalhem e prejudiquem a mulher não só na organização, mas fora dela também. E isso não deve ser ignorado pelas companhias."
Vítimas podem ter problemas de desempenho
Se a empresa não se contentar com esse argumento, que já seria mais do que suficiente, há também um econômico. "As companhias são uma extensão das vidas dessas mulheres. E, inevitavelmente, essas vítimas podem apresentar diversas dificuldades no ambiente profissional em decorrência da violência sofrida, como baixa produtividade, baixo desempenho, maior número de faltas. Ou seja, a performance não será a mesma", diz Carla.
Por outro lado, os benefícios para as empresas que têm compromisso com o tema vão além do aspecto da produtividade. "A partir do momento que a empresa acolhe e protege suas funcionárias, ela se tornará uma companhia mais humana, com cultura que tem um impacto social na comunidade em que ela se insere. E isso contribui para a atração e a retenção de talentos." Confiando na empresa em que trabalham, as mulheres sabem que não vão perder seus empregos, como o que aconteceu com Renata -o que prejudicaria ainda mais suas vidas.
"Segundo o Ministério Público de São Paulo, a dependência financeira é o principal obstáculo das vítimas. Uma em cada quatro não abandona ou denuncia o agressor porque depende financeiramente dele", diz Carla. "Portanto, é extremamente importante que essas mulheres sintam a segurança de que vão manter seus empregos e recebam o devido suporte para conseguirem romper o ciclo da violência."
Para a especialista da Talenses, o fato de não haver muitas mulheres em cargos de liderança contribui para o problema. Um estudo recente da consultoria em parceria com o Insper revelou que apenas 13% das 532 empresas participantes contam com uma CEO mulher.
"Caso houvesse mais mulheres nesse nível hierárquico, imagino que poderia existir uma sensibilização maior para o apoio às funcionárias vítimas de violência. O Magazine Luíza, por exemplo, que teve a Luiza Helena Trajano como CEO por tantos anos, é uma das empresas mais engajadas no tema do combate à violência doméstica com o famoso projeto Mete a Colher", diz Carla.
"Mas, enquanto a equidade de gênero não atinge os cargos de liderança, é extremamente importante envolver os homens nesse discurso e evidenciar aos CEOs homens a importância do assunto."
*O nome foi alterado para preservar a identidade da entrevistada.
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