Caso Jean: futebol afirma masculinidade e repele feminino, diz pesquisadora
No Brasil, o futebol funciona como espécie de formação de "currículo" para homens e está diretamente ligado à afirmação da masculinidade e da heterossexualidade. Mas, aos poucos, esse cenário vem mudando, diz a doutora em antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Cláudia Samuel Kessler, que estuda a relação entre futebol, gênero e sociedade, ao comentar o caso da agressão do goleiro Jean contra sua mulher, Milena Bemfica.
Jean foi preso nesta quinta (18), em Orlando, nos Estados Unidos. A polícia americana afirma que ele deu oito socos na mulher, Milena. A vítima tentou se defender com uma chapinha, mas foi agredida na região do rosto. O caso veio à tona porque ela denunciou a agressão do marido e pediu socorro por meio de vídeos publicados em uma rede social —antes, ela já havia usado a rede para relatar brigas e ciúme do jogador. Ele foi preso e liberado para retornar ao Brasil. O São Paulo, com quem tinha contrato até 2022, decidiu demitir o jogador.
Segundo Cláudia, também professora de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), os clubes de futebol criaram ambientes masculinizados, que impedem a participação feminina. Mas, aos poucos, como grandes empresas, começam a buscar uma conexão com valores inclusivos e a mostrar que não toleram sexismo e violência. "Os consumidores podem escolher para quem dão seu dinheiro: se para um clube que tem um jogador que agride a esposa ou para uma instituição de caridade", diz. "As ações do São Paulo servirão como um recado do clube contra qualquer tipo de violência."
Os clubes parecem ter mudado de conduta em relação a abusos cometidos por atletas fora do gramados. A que se deve essa mudança?
Além de serem empresas que devem pensar na saúde econômica e na manutenção de times com ótimo desempenho esportivo, os clubes devem estar alinhados com os valores sociais da atualidade. Os consumidores podem escolher para quem dão seu dinheiro: se para um clube que tem um jogador que agride a esposa ou para uma instituição de caridade, por exemplo. Alinhados a essas mudanças, os clubes precisam demonstrar que não toleram homofobia, racismo, sexismo, assédio e violência.
As influências dos novos movimentos sociais, desde os anos 1980 [como a Democracia Corinthiana], são bastante evidentes. As pessoas repudiam, cada vez mais, comportamentos de violência e exclusão, principalmente em relação às mulheres e outras minorias. As ações do São Paulo servirão como um recado do clube contra qualquer tipo de violência. Espera-se que as medidas sejam exemplares, demonstrando o interesse do time em eliminar comportamentos que não são considerados socialmente adequados.
Qual a influência do futebol sobre a masculinidade do brasileiro?
O futebol é um elemento cultural muito ligado à reafirmação da masculinidade e também da heterossexualidade, mas precisamos destacar que isso é mais marcado no Brasil e em alguns países da América Latina. Em termos de continente americano, nos Estados Unidos, por exemplo, há outros esportes que são referência de masculinidade, como o hóquei e o futebol americano. O pesquisador Gustavo Andrada Bandeira, da UFRGS, argumenta que, no futebol, é ensinado um "currículo de masculinidades". Nos estádios, nos bares e em outros locais onde se fala e vive o futebol, são ensinadas pedagogias de torcer, que determinam o que são comportamentos esperados ou vetados para os torcedores, repletos de códigos morais e estéticos.
O futebol é machista?
Não podemos ser tão taxativos e pensar que o futebol é machista. Há pessoas envolvidas com o futebol que são machistas, mas outras não. Não se pode negar, entretanto, que há uma estrutura de poder no futebol que repele o que é ligado ao universo do feminino, impedindo que acesse e permaneça nesses espaços de maneira irrestrita. Principalmente quando se trata de postos de prestígio e projeção social, como cargos de diretores de clubes, percebe-se que vigora uma lógica masculina. Como reflexo da sociedade brasileira, há no futebol pessoas machistas, assim como em qualquer outra esfera.
Casos de violência contra a mulher foram abafados no passado, devido à capacidade financeira e jurídica dos atletas. O dinheiro também causa uma sensação de possível impunidade para a prática dessa violência?
Infelizmente, sabemos que o poder econômico e o poder simbólico estão ligados, perpetuando historicamente inúmeras desigualdades. Ou seja, ser rico, no Brasil, pode conferir prestígio e regalias, bem como, em algumas situações, conferir a uma elite o privilégio de não sofrer o rigor das punições, quando comete erros. Eu não restringiria essa ideia de impunidade apenas ao futebol.
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