Whitney Plantation: a inesquecível visita à ex-fazenda de escravos nos EUA
"Aconteceu em solo americano. Mas é importante lembrar disso, sem vinganças e sem rancores, para que os erros do passado não aconteçam novamente."
Sem muito meio termo, as palavras da guia Cheryl Gaudet soam como um aviso do que os visitantes encontrarão na Whitney Plantation, em Edgard, no estado da Luisiana, sul dos Estados Unidos: eles estão prestes a conhecer uma perspectiva da história da escravidão em território americano que, provavelmente, será inédita a eles. Inédita e zero romântica.
O espaço foi inaugurado ao público em 2014 como um museu dedicado à história da escravidão. Localizado em uma antiga fazenda a cerca de uma hora da turística Nova Orleans, esta semana a área voltou a chamar atenção mesclando passado e presente após o gesto de estudantes de medicina da Faculdade de Toulane.
Em frente a uma das senzalas -que os americanos chamam de "slave quarters"—, o grupo de alunos, todos negros, e a maior parte deles mulheres, posa com seus jalecos brancos e o símbolo de punho em riste que fez a fama de um dos mais poderosos movimentos contra a segregação nos EUA, o Black Panters.
"Somos os sonhos mais ferozes dos nossos antepassados", escreveu uma das estudantes, Sydney Labat. "Como médicos em treinamento, estávamos nos degraus do que antes era o local de escravos para nossos ancestrais. Essa foi uma experiência tão poderosa e me levou às lágrimas. Para os negros que seguem uma carreira na medicina, continuem. Para toda a nossa comunidade, continuem se esforçando. A resiliência está no nosso DNA."
A foto viralizou e despertou reflexão sobre o presente a partir do que ocorreu no passado de uma nação.
Sobretudo em um país cujo fim institucional da segregação racial não é um fenômeno exatamente antigo —data da década de 1960, com a assinatura dos direitos civis (em 1964) e o direito ao voto para negros (em 1967) —, embora a abolição da escravatura tenha ocorrido quase um século antes, 1863.
Essa é a proposta defendida pelo Whitney: contar a história, aprender com ela, transformar.
Cenário de filmes e legado histórico: o que ver lá?
A reportagem de Universa visitou o museu há pouco mais de um mês. O local, como outras fazendas da região, é um dos atrativos vendidos aos turistas que visitam Nova Orleans, com destaque para questões como a vegetação local e as construções coloniais exuberantes.
Por sinal, esse é um dos aspectos mencionados pela guia Cheryl: a região já foi apelidada de "Hollywood do Sul", pela diversidade de megaproduções filmadas por ali. Não apenas na Whitney, como em outras que, como ela, estão na River Road —uma estrada de duas pistas que percorre, ao norte, as proximidades do rio Mississippi.
Produções como "Jango Livre", "Entrevista com o Vampiro" e "Doze Anos de Escravidão" foram filmadas ali. Não raro, é isso o que permeia a curiosidade de turistas que param para fotos em frente aos imensos casarios - a "Big House" ("Casa Grande") com quase 20 cômodos, por exemplo, no caso da Whitney - e em estradas que são como que túneis verdes de majestosas árvores seculares.
Senzala, casa grande e os vagões-jaula
Não são esses, porém, os atrativos que fazem da fazenda um lugar difícil de esquecer.
São os quartos de escravos como aquele em frente do qual os estudantes posaram para a foto. Quartos para 22 escravos, que se revezavam segundo o turno de trabalho forçado. Grupos de 11 tinham de se amontoar ali, em uma das regiões mais quentes dos Estados Unidos.
Na casa grande, um espaço para vinhos, anexo à cozinha, tinha praticamente um terço do tamanho da senzala em que os 22 escravos se revezavam para dormir. A casa era frequentada apenas pelos escravos mais próximos do senhorio, como os pajens e os empregados "domésticos", que cuidavam da limpeza, das roupas e da comida.
O que torna uma fazenda dessa inesquecível não é a locação hollywoodiana por si só, mas a pitoresca Igreja Batista Antioquia, que, por muitos anos, foi a única igreja afro-americana na região. Doada e transferida para a fazenda Whitney de outro local na margem leste, a construção abriga, além de móveis dos séculos 18 e 19, um conjunto de esculturas em argila em tamanho natural feitas pelo artista plástico afro-americano Woodrow Nash. As esculturas representam crianças - os "filhos de Whitney". Os filhos negros, escravos, bem entendido.
Algumas dessas esculturas de crianças escravas estão também nas varandas das senzalas -com estátuas mirando um horizonte que contempla vagões de ferro, de tamanho médio, fechados e enferrujados, expostos ao tempo. Era ali, segundo os historiadores, que escravos chegavam de leilões ou aguardavam para serem leiloados. Resumindo: jaulas.
Mas o que definitivamente torna Whitney um lugar absolutamente impressionante são os murais que homenageiam os escravos que fizeram dos Estados Unidos um dos principais fluxos negreiros da história da humanidade - nada que supere, entretanto, os quase 5 milhões de negros comercializados por Brasil e Portugal no mesmo período.
Batizados de "Muro de Honra" e o sugestivo "Campo dos Anjos", com foco nas crianças, esses espaços homenageiam os escravos que viveram e morreram na escravidão que existiu no país.
A reportagem quis saber da guia se a fazenda é um espaço visitado também por alunos da região. Cheryl explica que sim, e que as visitas têm se tornado mais comuns. "Muitos que chegam aqui são estudantes que não conhecem a história da escravidão - porque isso não é contado nas escolas ou no seio familiar. Há uma completa falta de conhecimento. E quanto da riqueza deste país vem da escravidão?", questiona.
A próprio guia responde na sequência: "Houve tráfico negreiro e exploração da mão de obra escrava intensos e isso construiu a fortuna de famílias tradicionais da época. Isso precisa ser dito, a fim de que não repitamos no futuro e no presente os erros do passado."
Cheryl trabalha no museu Whitney e nasceu e cresceu na região e tem antepassados que foram escravizados, razões pelas quais, admite, ali é mais do que apenas um trabalho: é algo pessoal.
"Não quero que ninguém aqui se sinta culpado ou constrangido- a proposta é contar a verdade com base em pesquisas feitas ao longo de vários anos. Estou aqui para repassar a vocês o que essas pesquisas encontraram - sem drama, só com relato histórico. O drama em si é a própria história. Sou apenas a mensageira da história, embora isso tenha, para mim, uma carga emocional", diz Cheryl aos visitantes já visivelmente impactados com as descobertas.
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