Filha de pastores; hoje é feminista e bissexual: "Parei de usar sutiã"
Quando Clara Tannure, que hoje tem 25 anos, nasceu, a terceira de uma família de quatro filhos, seu destino já estava entrelaçado à cultura evangélica. Ela é filha dos pastores João Lucio e Helena Tannure, que até em 2010 cantavam em um dos grupos mais importantes da cena gospel, o Diante do Trono. Foram mais de 15 milhões de cópias vendidas e ela também se apresentava com o grupo até os 14 anos.
Diante dos ventos rebeldes da adolescência, no entanto, Clara começou a questionar alguns dogmas da igreja e a se interessar por elementos da cultura 'secular' -- nome dado às expressões artísticas que não são gospel -- embora não tivesse muito acesso a esse mundo, já que o ambiente da família era essencialmente evangélico, assim como as pessoas com quem se relacionavam. Nessa época, confusa e dividida entre o que queria fazer e a doutrina da igreja, foi diagnosticada com depressão.
Formada em Comunicação e trabalhando na área, sentia que faltava alguma coisa. Como era fã de cantoras como Lady Gaga e Britney Spears, Clara se inspirou nas musas para compor seu hit pop 'Chora Boy'. No clipe de lançamento, além de a moça aparecer ingerindo bebidas alcoólicas, dois homens se beijam. Ela jura que foi natural, que os rapazes eram namorados, mas a comunidade gospel ficou horrorizada. Veículos gospel de fofoca a elegeram como uma das pautas mais interessantes e desde então ela tem sido atacada via comentários, sendo inclusive, comparada com o irmão, que ainda é evangélico. O clipe tem mais avaliações negativas do que positivas, numa tentativa de boicote à carreira da cantora.
A cereja do bolo foi quando Clara se assumiu bissexual, há cerca de seis meses. Sua mãe, Helena, muito respeitada no mundo gospel, já declarou que ama muito a filha, embora "sejam mulheres diferentes". Clara diz que já houve muita conversa sobre o assunto e que se dá bem com a família. Hoje, lançou seu segundo clipe, "Sem Juízo", em que canta com Dedé Santaklaus, "uma resposta para os haters". À Universa ela contou um pouco de como se deu essa transformação.
"Os amigos dos meus pais e os meus amigos também eram todos evangélicos. Eu comecei a ver coisas que não me agradavam, como o entendimento de que a mulher deve ser submissa ao homem. Vi alguns homens sendo bem escrotos com mulheres e comecei a externar o que eu não achava certo.
Um pouco antes entrar na faculdade, comecei a entender que queria outras coisas da minha vida. Eu queria muito ir na formatura do colegial e meus pais não queriam que eu fosse. Afinal, a gente ia beber, ia beijar. Eles queriam me preservar, era mais para cuidar — mas eu estava superinteressada na festa.
No começo foi muito difícil, eu pensava: 'será que não tem jeito para mim, que eu vou para o inferno? Eu achava que eu não podia fazer as coisas que eu tinha vontade. Foi um processo de amadurecimento, de conhecer o que fazia parte do meu universo? Hoje eu vejo que está tudo bem, eu não vou pro inferno não.
Eu acho que a gente tem que buscar pessoas boas ao longo da vida, não fazer o mal para os outros. Pra mim é mais sobre isso, não sobre religião. E eu acho que toda religião merece respeito, não só uma".
Sexualidade
"Me assumir bissexual foi um pouco mais difícil para mim, não pelo fato de meus pais serem evangélicos, mas por eu saber que eles não aprovavam. E pelo fato de eles serem pessoas públicas, seria uma notícia. Isso sempre me travava. Não era sair do armário só para a minha família, era para o Brasil inteiro.
Eu tenho amigos LGBTI que são filhos de pessoas evangélicas. Os pais deles até hoje não sabem disso, os filhos têm medo de contar e acabam ficando nessa vida dupla. E como eu vou julgar essa pessoa? Eles têm muito medo de serem mandados embora de casa, de serem condenados ao inferno.
Eu acho que é questão de personalidade: sempre fui assim meio 'rebeldezinha', e de questionar, mas há um tempo eu percebi que ficar brigando [com meus pais] não ia rolar. Briga não leva ninguém a nada, só piora. Eu demorei muito tempo brigando com meu pai e minha mãe ao invés de fazê-los entender o meu lado também. Por isso, hoje em dia a gente se dá bem. Eu aceito um pouco, eles aceitam um pouco. Sei que não é fácil, são pessoas com ideias diferentes, mas como família a gente se ama, a gente quer estar junto. E eu sei que se eu precisar de alguma coisa eles vão estar lá.
E é isso, a gente tem que aprender a conviver com quem é diferente se não a gente não aprende nada, [vivendo] só na nossa bolha.
Eu tenho muita sorte, porque tem muita gente que tem medo de envergonhar a família [por ser LGBTI]. Minha mãe ela fala: eu não concordo, mas eu amo você e não tenho vergonha de você ser minha filha, porque eu conheço você inteira. Atualmente eu moro com dois amigos, mas a gente se visita."
Carreira secular
"Da última vez que gravei cantando com o Diante do Trono, eu tinha cerca de 14 anos. Depois disso, eu dei um tempo para saber o que eu queria fazer.
Cursei publicidade e propaganda e design gráfico, estava trabalhando na área, mas não tava feliz. Eu pensava 'isso aqui é ótimo, mas não era minha primeira opção [de trabalho]. Aí eu comecei a correr atrás de lançar algo autoral e um vídeo clipe para poder chamar a atenção e falar o que eu queria falar de fato.
Estou sentindo agora como será a minha carreira. É estranho, parece que é alguém que nasceu aos 20 anos, porque ninguém sabia onde estava. O pessoal que frequenta os lugares que eu vou, as festas, eles já se conhecem de infância ou da escola e eu não conheço a galera, mas estou sendo muito bem recebida. As pessoas estão me conhecendo aos poucos. Tenho sido cada vez mais conhecida de uns oito anos para cá".
Depressão
"Foi um momento muito difícil, eu ainda nem refletia sobre o fato de ser bissexual ainda. Era essa situação de querer fazer coisas que eu não 'deveria' fazer. Eu não me aceitava? Era um sentimento de que eu não ia ser aprovada e de que eu permanecia errada, não importa o que eu fizesse. Em relação à igreja, aos meus pais, e entender que eu não estaria naquele projeto inicial. Foi uma grande confusão na minha cabeça. Quando a gente é adolescente a gente sente muito, né?
Toda essa situação de querer fazer as coisas e achar que não seria aprovada, em relação a esse contexto da igreja, de não estar alinhada às expectativas dos meus pais. Eu ainda luto contra a depressão, mas nessa época eu tive uma depressão muito grave. Hoje eu sei que lido com ela [depressão] de um jeito melhor".
Críticas
"As pessoas são cruéis. Eu fiz uma live nas minhas redes sociais para falar de setembro amarelo: contando que eu tenho depressão, que estou fazendo terapia, toda a dedicação e o tratamento — porque eu pensei que seria legal falar para pessoas que estão lidando com isso. Recebi comentários do tipo 'você está assim porque não está orando', ou 'é porque você saiu da igreja'. Eu acho que esse assunto tem que ser conversado, galera, é uma questão clínica!
Quando eu comecei, eu postava músicas que eu cantava no Soundcloud, e depois comecei a postar no Youtube. As pessoas começaram a me xingar porque eu tinha saído da igreja, não estava mais cantando música cristã.
Eu nem respondo às críticas dessas pessoas porque elas não me conhecem, não sabem que eu sou, a minha história. Eu tenho que responder quem me conhece."
Bandeiras
"Eu quero falar do feminismo - que é o que eu acredito e acho importante ser falado.
Não como um bicho de sete cabeças, sinônimo de mulher que não se depila, que raspa a cabeça, que é doida e mostra o peito na manifestação.
A galera que é evangélica acha que é isso, e na verdade é um movimento que faz muito sentido, que fala de direitos e fala sobre igualdade e justiça, que é uma coisa que na bíblia, se fala muito. Eu acho a pauta feminista muito importante, é um assunto que eu debato com a minha mãe já há muito tempo. A gente discute sobre, mesmo, porque eu quero saber o lado dela sobre as questões, porque realmente é muito importante para mim.
Eu parei de usar sutiã há algum tempo, porque é uma coisa que me incomoda e conversei com a minha mãe sobre isso, porque eu não acho que seja uma coisa necessária de eu usar.
Eu apoio a campanha 'Free The Nipple' - em tradução literal, 'Liberte o Mamilo' -, que promove a igualdade de gênero. Nunca cheguei a mostrar o seio, mas já postei fotos bem sensuais e a minha avó, dona Syngleton, que tem quase 72 anos, acompanha minhas redes sociais e comenta minhas fotos do Instagram com palminhas! Eu acho tão bonitinho!
Outro assunto que eu acho importante é a bandeira que diz respeito da população LGBT. Eu acho que é muito importante as pessoas se informarem mais sobre estudos de gênero e sexualidade. Porque isso faz parte de quem eu sou: eu sou bissexual, não porque eu escolhi ser assim, eu nasci assim. Eu me lembro de alguns sentimentos desde criança. Nada do que eu faço é para envergonhar meus pais ou magoá-los, é só porque eu escolhi seguir outro caminho."
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