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Mulher de casal lésbico matou a companheira: é feminicídio? Entenda

Primeiro caso de feminicídio cometido por mulher foi registrado em Brasília, em setembro de 2019 - Getty Images/iStockphoto
Primeiro caso de feminicídio cometido por mulher foi registrado em Brasília, em setembro de 2019 Imagem: Getty Images/iStockphoto

Camila Brandalise

De Universa

09/01/2020 04h00

Debates sobre violência contra a mulher costumam abordar o agressor como sendo sempre um homem. Mas as leis do Feminicídio e Maria da Penha não fazem distinção quanto ao gênero ou a orientação sexual de quem pratica as agressões. Por isso, também é considerado feminicídio o assassinato de uma mulher, cometido em contexto de violência doméstica, por outra mulher —no caso, sua companheira ou ex.

O primeiro caso de feminicídio de autoria feminina reconhecido pela Justiça brasileira é recente: foi registrado em setembro de 2019 — a lei que trata especificamente sobre esse tipo de crime é de 2015. A motorista de aplicativo Tatiana Luz da Costa, 35, foi morta pela namorada, Wanessa Pereira de Souza, 34, que colocou fogo na companheira no apartamento que dividiam, em Brasília. Ela teve 90% do corpo queimado. A denúncia foi apresentada pelo MPDFT (Ministério Público do Distrito Federal e Territórios) em outubro, a ré está presa e uma nova audiência deve acontecer em março.

Tatiana Luz, vítima de feminicídio - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Tatiana Luz foi vítima de feminicídio cometido pela companheira, segundo o Ministério Público do Distrito Federal
Imagem: Reprodução/Facebook

Segundo testemunhas ouvidas pelo Ministério Público, a relação das duas era "conturbada". Wanessa demonstrava ter um sentimento de posse sobre a parceira e tinha crises de ciúme. Na manhã que antecedeu o crime, cometido por volta de meio-dia, elas discutiram por mensagens de celular. Wanessa ameaçou Tatiana: "Vou tacar fogo em você".

"Ficou caracterizado que havia um contexto objetivo de violência doméstica", diz o promotor responsável pelo caso, Leonardo Otreira. "Uma mulher lésbica em uma relação homoafetiva pode ter internalizado os mesmos valores machistas e negativos que aparecem em relações heterossexuais e pode vir a praticar os atos por entender que a mulher com quem se relaciona tem que ser subjugada à sua vontade", diz o promotor.

A advogada criminalista Soraia Mendes explica que há duas hipóteses quando se trata de feminicídio: no contexto íntimo, decorrente de violência doméstica e familiar, como no caso acima, e como crime de ódio, de menosprezo ou desprezo da condição de mulher. "O íntimo decorre de relações conjugais e pode contemplar a esposa ou a namorada", explica Soraia, coordenadora do Cladem (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher).

Agressora repete padrão masculino

"Nesses casos [em que uma mulher mata ou agride a parceira], a mulher está propagando atitudes machistas identificadas na sociedade em que foi criada. Quando ela vira sujeito ativo dentro do relacionamento abusivo, está repetindo o padrão masculino", afirma a advogada Luanda Pires, coordenadora do núcleo de Mulheres LGBT da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP.

Ela diz, ainda, que a vítima pode nem perceber que está sofrendo violência doméstica, uma vez que, geralmente se entende que esses atos aconteçam em relacionamentos heterossexuais. "Nós, lésbicas, temos mais dificuldades em identificar e aceitar essas situações. Se fala muito sobre violência doméstica, mas é sempre entre casais heterossexuais. Então a gente está acostumado e propenso a imaginar que a agressão sempre virá de um homem", afirma.

"Mas a violência é a mesma", destaca. "Psicológica, diminuindo a autoestima da outra pessoa, moral, quando força uma relação sexual que não é desejada, ou patrimonial, com subtração de dinheiro ou bens."

Em dezembro de 2019, foram registrados outros dois casos de feminicídio cometidos por mulheres em São Paulo, os primeiros do estado. Mas isso não significa que foram, de fato, os primeiros a serem cometidos.

Não há dados consolidados sobre o número de mulheres assassinadas por companheiras no Brasil. Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entidade que em 2019 publicou um extenso levantamento sobre feminicídios ocorridos no país, explica que a ausência de dados é decorrente da falta de detalhamento sobre os autores do crime na hora do registro dos boletins de ocorrência.

"As estatísticas oficiais dos Estados são feitas com base nos boletins e o que aparece nos registros é se a autoria é conhecida ou não e qual o vínculo com a vítima. O gênero pode aparecer no histórico, mas é um campo aberto, que não funciona para fins estatísticos."

Feminicídio x Lesbocídio

Luanda ainda explica que há uma diferença entre o assassinato de uma mulher cometido por sua companheira e a morte de uma mulher lésbica fora do contexto doméstico. "O primeiro é praticado por questão de gênero, como especificado na lei, o segundo por uma questão de sexualidade", diz.

No caso do lesbocídio, o crime cometido, além do homicídio, é o de homofobia, seguindo decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de junho de 2019. "Lésbica pode sofrer feminicídio? Sim. Mas a mulher heterossexual só sofrerá lesbocídio se for confundida com uma lésbica e assassinada por essa razão."