Estudantes nordestinas combatem machismo com literatura de cordel
Estudantes do ensino médio de uma escola em Cascavel, município com 85 mil habitantes no interior do Ceará, descobriram uma forma criativa de colocar em pauta o feminismo e as várias formas de discriminação. Para isso, elas passaram a produzir literatura de cordel, típica da região, baseada nesses temas.
O projeto, batizado de Dice, em referência à deusa grega da justiça, não tem tido impacto apenas na Escola Estadual de Educação Profissional Edson Queiroz, onde estudam. Com ele, as alunas conseguiram trazer os temas para o debate e mudar algumas dinâmicas escolares e até detalhes do currículo escolar.
Graças à iniciativa, a escola foi finalista da premiação nacional Desafio Criativos da Escola 2019, promovida pelo "Design for Change", movimento global que estimula crianças e adolescentes a expressarem sua criatividade por um mundo melhor.
A ideia surgiu em 2017, depois que um grupo de meninas com entre 15 e 18 anos começou a questionar em aula o porquê de a escola não fomentar discussões sobre empoderamento feminino. Muitas delas relatavam enfrentar situações de machismo cotidianamente.
"Como trabalhamos o tema 'cidadania', resolvi ceder um momento de minhas aulas para debatermos esse assunto", diz Claudio Simplício, professor de filosofia e sociologia. "O problema é que alguns alunos não se interessavam muito, achavam o assunto complexo e entediante. Então decidimos pensar em uma solução conjunta, que conquistasse a todos."
A notícia logo se espalhou entre as turmas e, de maneira espontânea, mais alunas se mobilizaram. Com orientação do professor Claudio, decidiram que usariam o cordel para discutir de maneira didática os diversos papéis da mulher na sociedade e combater situações de preconceito, opressão e assédio.
"Mais do que ganhar nota, queríamos fazer as pessoas ao nosso redor refletirem sobre como o machismo é algo grave", relembra Francisca de Miranda, ex-aluna da escola e uma das idealizadoras.
Sala de aula feminista
No começo, a mudança promovida na escola não agradou a todos e foi recebida até mesmo como uma afronta. "Tivemos de enfrentar relutâncias, como a de alguns pais e até de membros da escola, que achavam a iniciativa ofensiva. Mas, depois de dialogar e apresentar nossas propostas para a gestão, conseguimos apoio e até mesmo alguns meninos se juntaram a nós. Dessa maneira, as meninas puderam divulgar o projeto em outros colégios da região", explica o professor Claudio.
Na escola Edson Queiroz, as alunas organizaram rodas de discussão e troca de experiências para tratar, por exemplo, sobre as várias formas de machismo, como identificá-lo e como combatê-lo. A partir desses encontros, elas criaram uma apostila em cordel com informações sobre como identificar e combater o machismo.
Além disso, conseguiram a inclusão de pensadoras e pesquisadoras no material didático que estudam em sala de aula. Assim, passaram a estudar, além de teóricos masculinos, nomes Hannah Arendt, Angela Davis e Viviane Mosé.
Nem o calendário escolar escapou delas. O Dia Internacional da Mulher, por exemplo, passou a ser debatido não só em 8 de março, como durante todo o ano letivo. E a escola também alterou sua programação para a semana da pátria. No lugar dos tradicionais desfiles, foram promovidos debates, que também incluíram temas como ética, homofobia e racismo. Como no final do ano havia também um projeto sobre cultura afro, o aproveitaram para trazer as mulheres negras para o centro das discussões.
A importância do cordel
O cordel não foi escolhido por acaso. Literatura tradicional do sertão nordestino, a linguagem carrega, em suas narrativas, histórias baseadas na realidade local. "O machismo é uma cultura que vai passando de geração em geração, assim como o cordel, que é uma cultura do nordeste, e que algumas vezes trata a mulher como objeto. Ao utilizá-lo, despertamos o interesse dos ouvintes, e, ao mesmo tempo, combatemos o machismo", explica Francisca.
O professor Claudio explica que combater o preconceito e trabalhar a questão de gênero ainda é um grande desafio nas comunidades, porque, por trás delas, agem facções criminosas e grupos religiosos com forte presença e atuação. "Apesar das dificuldades, as alunas cordelistas têm avançado e algumas já formadas levaram nossa discussão para as universidades e voltam para palestrar na escola. Se começamos timidamente, hoje posso dizer que impactamos centenas de vidas e estamos quebrando paradigmas".
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