Mulheres negras invadem ritmo dominado por homens e criam banda de afrobeat
Combinando diversos tipos de percussão africana com música yorubá, jazz, funk e outros ritmos, o afrobeat é considerado um estilo contestador. Na Nigéria dos anos 1970, foi fundamental contra a ditadura militar que havia sido instaurada naquele país. Era um veículo contra o racismo, a desigualdade e o colonialismo.
Quando se fala do movimento hoje, a ideia mais difundida é que o surgimento do afrobeat se deve principalmente ao talento e à coragem de um único homem, o músico nigeriano Fela Kuti (1938-1997), que ficou conhecido por duras críticas aos governos africanos no período ditatorial.
Só que, muito antes de Fela, sua mãe, a professora e ativista Funmilayo Kuti, já lutava por justiça social. "Ela fundou a Associação Mulheres da Nigéria, liderou a luta das mulheres por liberdade, pelo direito ao voto e sua figura forte marcou a carreira do músico por toda a vida", diz Rosa Couto, cantora, compositora e autora do livro "Fela Kuti: contracultura e (con)tradição na música popular africana".
No Brasil, a fim de reverenciar a memória de Funmilayo e percebendo a falta de um grupo de afrobeat composto apenas por mulheres negras, duas musicistas, a saxofonista Stela Nesrine e a trompetista Larissa Oliveira, decidiram lançar no ano passado, em São Paulo, a Funmilayo Afrobeat Orquestra.
Composta por 11 mulheres negras, a banda vem marcar presença num território predominantemente masculino. Se as dificuldades de compositoras, arranjadoras e instrumentistas eram sempre ingressar e se manter no mercado de trabalho, as de cantoras, backing vocals e dançarinas é serem percebidas no palco não apenas por sua imagem ou exposição do corpo.
"A existência de um coletivo preto como o nosso significa a necessidade de representatividade negra brasileira feminista num país cujo espaço musical é dominado por homens majoritariamente brancos", explicam as artistas, que pedem para responder às perguntas de Universa não individualmente, mas como um coletivo.
Além de Stela e Larissa, também formam a orquestra Sthe Araújo e AfroJu Rodrigues (percussionistas), Ana Goes (saxofonista e vocalista), Suka Figueiredo (saxofonista), Bruna Duarte (baixista), Priscila Hilário (baterista), Jasper (guitarrista e vocalista), Tamiris Silveira (tecladista) e Rosa Couto (vocalista). De acordo com o grupo, se existem ou já existiram outras bandas de afrobeat formadas apenas por mulheres negras, no Brasil ou no mundo, isso não chegou ao conhecimento delas.
Marielle como inspiração musical
Com músicas que incluem tanto releituras do afrobeat como letras autorais, o repertório do grupo busca encorajar mulheres que não se enxergam representadas na sociedade e quebrar tabus sobre sua sexualidade ou estilo de vida. O público-alvo são mulheres negras de diversas idades. "Essas mulheres precisam ocupar os espaços, construir uma rede de apoio e de amor entre elas e estamos aqui para nos fortalecer", dizem as integrantes da banda.
Em novembro, elas lançaram "Negração", música que homenageia Marielle Franco, vereadora assassinada no Rio em 2018.
"A música, de certa forma, foi elaborada a partir de gritos entoados nas manifestações Brasil afora, como 'Marielle, presente!'. E é justamente esse clima que queríamos que ela transmitisse: uma mensagem para as pessoas se movimentarem, pela dança, pela ação política."
Para o grupo, tanto Marielle como Funmilayo Kuti foram mulheres corajosas, cujas lutas políticas se relacionam e que tiveram as trajetórias interrompidas de maneira criminosa. Em 1978, Funmilayo foi jogada por militares da janela de um prédio e morreu em decorrência dos ferimentos. "As duas enfrentaram conservadorismos e autoritarismos que ainda permanecem ativos. Não podemos ficar em silêncio diante disso. Então é na cultura africana e afro-brasileira, na solidariedade feminina e na luta por mais igualdade social que buscamos nossa fonte de força e inspiração."
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