Insultado por Jacquin e ameaçado de morte, dono de restaurante vive da fama
O que você faria se, do dia para a noite, seus defeitos fossem conhecidos no país inteiro? O empresário Fábio Lima, 35, dono do restaurante Pé de Fava há quatro anos, em Guarulhos, na Grande São Paulo, precisou encontrar uma resposta para isso.
Todos os dias ele recebe dezenas de mensagens no WhatsApp e trotes telefônicos para lembrá-lo de ligar o freezer que armazena os ingredientes de seu restaurante. Em vez de se irritar, ele aprendeu a brincar e a se orgulhar da recordação. "Eu me emociono quando aparece um pai aqui, por exemplo, e diz que o presente que a filha pediu foi o de me conhecer", diz. Seu rosto se contrai levemente de emoção.
Não à toa, o erro de Fábio se tornou um meme.
Em 2019, o restaurante Pé de Fava foi "resgatado" pelo reality show "Pesadelo na Cozinha", apresentado por Erick Jacquin. No programa, o chef vai a restaurantes desorganizados, financeira e hierarquicamente, para promover uma reforma e botar ordem na casa. O Pé de Fava, de Fábio, foi escolhido para a estreia da segunda temporada.
No trecho mais famoso do episódio, o chef Jacquin descobre que o freezer do restaurante é desligado durante a noite para poupar energia elétrica. Inconformado, o chef grita e acusa Fábio na frente das câmeras de intoxicar seus clientes. Jacquin foi duro: para ele, Fábio era a vergonha de toda uma classe.
Na televisão, o episódio passou batido. Na internet, tornou-se uma sensação. Assim que foi publicado no YouTube, dezenas de outros vídeos e centenas de memes foram criados para repercutir o freezer desligado. Do dia para noite, dezenas de milhares de pessoas descobriram que Fábio não é tão bom naquilo que se dedicava havia anos.
Por trás do meme há um nordestino nascido em Viçosa, no Alagoas. Como tantos outros, largou tudo para tentar a sorte em São Paulo. Durante dois anos, morou em um apartamento pequeno com a mulher, Sâmia Lima. Os dois vieram juntos do Nordeste para morar com o sogro em um pequeno apartamento. Viviam apertados e dormiam até na cozinha. Com o tempo e emprego, os dois conseguiram um apartamento popular em uma das maiores favelas de Guarulhos.
Do Nordeste, Fábio tem lembranças de uma infância divertida e com privações. O pai era pedreiro e a mãe, empregada. "Nunca passei fome, mas passava períodos longos sem comer. Minha sorte é que atrás de minha casa tinha muito pé de jaca, laranja, e muita plantação de cana-de-açúcar", lembra.
Ao chegar em Guarulhos há 12 anos, conseguiu um emprego como operador de máquinas em uma fábrica de peças para a indústria de cosméticos. Sâmia foi trabalhar em uma fábrica de pães. Fábio viu a oportunidade de ser promovido após um gerente anunciar a aposentadoria. "Eu trabalhei das 7h até a meia-noite para ter hora extra. Me chamavam até de puxa-saco. Comecei a estudar engenharia de produção para tentar a vaga", lembra.
Na mesma época, Sâmia ficou grávida, mas a promoção de Fábio nunca aconteceu. Sob alegação de reestruturação no quadro de funcionários, ele foi demitido e precisou negociar a manutenção do convênio médico por mais quatro meses. A gestação já estava no 8º mês. "Eu fui para casa e parecia que eu não tinha chão", diz.
Após a demissão, Fábio e a mulher foram obrigados a retomar o sonho antigo de abrir um restaurante, juntar dinheiro e voltar para o Nordeste. Na cara e na coragem e em um espetáculo de improvisação, Fábio e mais um sócio nordestino inauguraram uma lanchonete na favela São Rafael, em Guarulhos.
A professora em antropologia na Universidade Federal de Goiás, Janine Collaço, é especialista em antropologia gastronômica e afirma que esse tipo de arranjo é comum desde a década de 50.
"Apesar de terem evoluído, esses estabelecimentos não costumam servir alta gastronomia. Em geral, é uma mulher que cozinha bem em casa, e o marido acredita que comida é saborosa o suficiente para gerar um negócio", diz.
Após a lanchonete, o mesmo sócio lhe ofereceu a abertura de um restaurante maior localizado em uma avenida movimentada do bairro Jardim Tranquilidade. O sócio precisou sair do negócio, e a bucha ficou nas mãos de Fábio. "Era só eu, o Fábio e a cozinheira", lembra Sâmia.
A estreia do Pé de Fava
No primeiro dia de operação, o empresário esperava por clientes quando um carro parou no estacionamento. Era o primeiro dia de funcionamento e o trio estava ansioso. O homem que desceu do veículo, porém, não pretendia almoçar. "Ele queria levar as minhas mesas embora. Como eu iria ter um restaurante sem cadeiras?", lembra. Fábio comprou a parte, assumiu o ponto e as dívidas do sócio. As mesas, por exemplo, não foram pagas na transição. Foi preciso negociá-las. O valor seria pago assim que o dinheiro entrasse no caixa.
Fábio convenceu o homem a mantê-las, mas não tinha bem ideia de como conseguir o dinheiro. Nas primeiras semanas, as vendas de pratos à la carte não decolaram. Um dia, enquanto tomava um ônibus no bairro, viu a placa de um restaurante próximo que anunciava: "comida à vontade por R$ 11". No dia seguinte, Fábio mandou fazer uma faixa ainda mais convidativa: "comida à vontade por R$ 9,90".
A atitude foi tomada sem qualquer planejamento financeiro, mas deu certo. Nos dias seguintes, dezenas de clientes ocuparam as mesas que quase foram levadas embora. Na cozinha estreita, entalada em um salão de 80 metros quadrados, Sâmia e a cozinheira se acotovelavam e sofriam diante das panelas quentes.
O nome do restaurante era Pé de Fava, mas Fábio tentou emplacar três nomes (Saborear, Varandas, São Jorge). Gastou dinheiro para imprimir cardápios, aventais e a fachada. À certa altura, o estabelecimento tinha três nomes simultâneos. Nenhum pegou. Ficou o Pé de Fava mesmo. "É mais fácil gerar uma marca consolidada do que criar algo", lembra.
A truculência e a teimosia de Fábio, acostumado a operar máquinas, impuseram um clima de guerra aberta no restaurante. Gritos eram dados na frente dos clientes. A desorganização impunha uma rotina caótica. "Todo mundo fazia tudo e ninguém fazia nada", lembra Fábio.
Para auxiliá-los, entrou em cena o "quebra-galho" Edmilson Tenório, 46, que também se tornou uma celebridade virtual. É difícil saber qual a função de Edmilson no negócio. Nem ele consegue explicar.
Magro e com forte sotaque paulistano, o encarregado já trabalhou como pedreiro, granjeiro e coveiro. Apesar da experiência, não conseguiu enterrar a própria mãe. Por nove meses, acompanhou a internação dela em um hospital público na zona leste de São Paulo. Quando uma insuficiência pulmonar a levou, há dois anos, Edmilson chorou a ponto de não conseguir se aproximar do caixão.
Desempregado e em luto, pediu ajuda a Fábio e ofereceu os próprios serviços para pagar a dívida que tinha com o amigo. O empresário, porém, errou o nome de Edmilson para a gravação do programa que foi ao ar no YouTube. Seu nome verdadeiro é Edilson. "Hoje eu aderi. Eu virei um personagem", brinca.
Por que ele desligou o freezer?
Enquanto isso, o preço menor e a comida à vontade pareciam dar certo, mas o Pé de Fava não dava lucro. Foi preciso subir o valor para R$ 12 apenas para conseguir fechar as contas. Para melhorar a coisa toda, ainda era preciso comprar um freezer maior.
Com a grana curta, Fábio adquiriu um modelo antigo em uma loja de eletrodomésticos usados. O aparelho até funcionava, mas criava placas de gelo. As coxas e sobrecoxas congelavam e tornavam-se uma espécie de fóssil da Era Glacial. Fábio e Edmilson usavam uma marreta para escavar os icebergs.
Para resolver o enrosco, Fábio teve uma ideia: desligar o freezer à noite. Assim, os ingredientes seriam descongelados durante a madrugada e estariam no ponto até a hora almoço. Além de resolver o problema, a medida também diminuiria as despesas com energia elétrica. O empresário achou a própria ideia genial (e ainda acha).
No episódio de estreia da segunda temporada de "Pesadelo na Cozinha", Jacquin sobe um lance de escadas onde fica o aparelho e descobre que o freezer de Fábio é desligado. Ao descobrir, vomita com o cheiro das carnes descongeladas. Edmilson e Fábio trocam acusações. Ensandecido, Jacquin grita para Fábio:
— VOCÊ É A VERGONHA DA 'POFISSION!'
O apresentador desce as escadas, volta ao salão do Pé de Fava e grita contra as funcionárias:
-- "DESLIGA O FREEZER À NOITE?! E VOCÊS NÃO ME AVISA" [sic], esbraveja.
As duas frases iradas, carregadas de sotaque francês, viraram um meme absoluto. Até o fechamento desta reportagem, o vídeo registra mais de 11 milhões de visualizações no YouTube. "O freezer é mais famoso do que a gente. Virou um ponto turístico de Guarulhos", diz Edmilson.
Nas primeiras semanas depois do evento, Edmilson não quis sair da favela onde mora. Já Fábio recebeu ameaças de morte. Para zombá-los, um grupo parou para almoçar e pediu uma carta de vinho e perguntou onde estava o "maître" do restaurante. "Na minha ignorância, perguntei se a Sâmia tinha contratado alguém com esse nome", desabafa. Por semanas, ele só foi ao trabalho usando carro por aplicativo. "Foram os memes e os youtubers que me salvaram", diz.
O futuro pós a fama?
Quando Universa esteve no Pé de Fava, Fábio parecia mais sorridente. Um churrasqueiro com uma camiseta do Corinthians e um boné laranja oferecia linguiças, lombo e costela à vontade.
Durante o almoço, adolescentes acompanhados dos pais pediam para conhecer o freezer e tirar fotos. Um fã lhe deu uma camiseta com o meme estampado. Edmilson estava lá, mas era impossível saber o que ele estava fazendo.
Daqui em diante, o empresário pensa em expandir o negócio -mas se considera uma pessoa mais cautelosa. Jacquin o introduziu a um cardápio novo de palavras e pratos. Agora, Fábio usa termos como "metodologia de trabalho", "plano de negócios". O programa o presenteou com um freezer novo. O antigo fica desligado, como uma espécie de amuleto.
"Se eu souber aproveitar o momento, a geração que curtiu o programa vai lembrar de mim quando falarem sobre o Pé de Fava daqui a dez anos. A fama só passa se você não souber aproveitar", ensina.
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