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No sertão baiano, elas criaram ateliê para tentar independência financeira

Eva de Jesus é participante do projeto Ateliê Forte das Severinas - Divulgação/Projeto Canudos
Eva de Jesus é participante do projeto Ateliê Forte das Severinas Imagem: Divulgação/Projeto Canudos

Abinoan Santiago

Colaboração para Universa

24/01/2020 04h00

"Nós ficamos na comunidade e vivemos da roça ou vamos para a cidade procurar trabalho. Já pensou a gente ter nosso próprio dinheirinho, sem depender de Bolsa Família, no fim do mês? Para mim, isso é muito importante."

É assim que a jovem Eva Maria de Jesus, 25 anos, conta como pensam ela e outras mulheres, que, por meio de um projeto social no sertão baiano, buscam a independência financeira do marido e de programas de distribuição de renda.

O Ateliê Forte Severina é uma iniciativa recente. Começou em março de 2019 para capacitar, com cursos de corte e costura, mulheres do distrito de Raso, na zona rural de Canudos, cidade a 394 quilômetros de Salvador.

A ideia é dar alternativa de renda às mulheres da comunidade, que conta com aproximadamente 300 habitantes e não dispõe de oportunidades de sobrevivência além do trabalho de subsistência na roça ou de programas sociais. Mas o programa quer mais: acabar com o preconceito em relação à mulher nordestina sertanista.

"Por sermos mulheres, nordestinas e da zona rural, somos muito discriminadas. Você conhece todo o estigma, não conhece? Minha intenção também era mudar essa visão que parte do país tem da gente, de ser um povo miserável e sem cultura", afirma Débora dos Santos, 29 anos, uma das idealizadoras do projeto.

O Ateliê Forte Severina está sediado na comunidade do Raso

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Canudos, que viveu um dos maiores massacres da história brasileira durante a guerra que levou seu nome, entre 1896 e 1897, enfrenta há muito uma batalha contra a pobreza.

Segundo o Ministério de Desenvolvimento Social, 47,83% dos 16,6 mil habitantes dependem do benefício do Bolsa Família. O indicador é um dos que colocam Canudos entre os piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, ocupando a posição 5.002 entre 5.565 municípios.

O início: 18 mulheres e 2 máquinas

O ateliê surgiu, conta Débora, depois que um holandês de passagem pela cidade decidiu bancar um curso para as mulheres do distrito de Raso. Consultadas, as moradoras demandaram uma capacitação de corte e costura.

Sem máquinas, espaço próprio ou professora, o início ocorreu no improviso. Os equipamentos (apenas dois) eram emprestados. O local que ocupavam, cedido por uma escola. E foi uma instrutora da própria comunidade que ensinou o básico que sabia de corte e costura a 18 mulheres, dando aulas de como fazer roupas de boneca.

Débora já nutria o sonho de ajudar financeiramente as mulheres de sua comunidade fazia alguns anos, desde que conhecera uma viajante, em Canudos, aos 19. "Ela chegou de moto sozinha, bem independente", lembra.

"Desde os 13 anos já me via como uma mulher independente. Eu vendia coisas de catálogos e revistas. Mas via casos de outras mulheres que dependiam financeira e emocionalmente dos maridos", diz.

Lusiane e Débora, que fazem parte do Ateliê Forte Severina - Divulgação/Projeto Canudos - Divulgação/Projeto Canudos
Lusiane e Débora: o sonho de não depender de benefícios do governo
Imagem: Divulgação/Projeto Canudos

A mãe de Débora é dona de casa, cuidava dos filhos e não tinha muita referência de mulheres que estavam em outro patamar, diz a jovem."Minha motivação era ser independente e tornar demais mulheres independentes também."

O projeto, aliás, deixou a mãe temerosa. O sentimento era regado pela própria cultura dominada pelo patriarcado no sertão baiano. Por outro lado, o pai sempre buscou incentivá-la — hoje ela é aluna do quarto semestre da graduação em administração pública na Universidade Estadual da Bahia (UESB).

Ateliê deu nova vida às mulheres

Com o ateliê, a vida das mulheres começou de fato a mudar - embora elas ainda não consigam se sustentar. Eva Maria de Jesus, por exemplo, tem 25 anos, está casada desde os 15 e tem dois filhos, de 8 e 7 anos, que são a principal motivação para que continue no projeto.

Eva tem o sonho de, com o dinheiro, dar conforto para os dois. A jovem considera uma vida melhor a garantia de comida na mesa, uma casa confortável e a permanência das crianças na escola.

"A Eva antes do projeto era um pouco estressada porque aqui na roça, você levanta de manhã, tem que ir para lenha [quando não tem gás para cozinha], cuidar dos filhos, dar banho, levar para escola e arrumar a casa. Hoje, não", diz, sobre ela mesma.

"Me distanciei um pouco do curso logo no início. Voltei depois que minha mãe morreu e, para mim, foi uma terapia porque conviver com outras mulheres me ajudou muito. Não esqueci, mas amenizou a dor."

Lusiane Nogueira Gomes, 26 anos, faz coro à colega. "O ateliê mudou a minha vida porque a gente se reúne, costura e vivemos em um meio de trabalho, algo que antes não existia", diz a mãe de um casal de 4 e 5 anos. A família recebe o benefício Bolsa Família do governo e Lusiane vê no Ateliê Forte Severina a oportunidade de contribuir com as despesas da casa - o marido é técnico em agropecuária, mas não tem carteira assinada.

A união das "severinas"

O ateliê ganhou seu nome em alusão à famosa obra "Morte e Vida Severina" (1955), do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999). A história narra a saga de um retirante sertanista chamado Severino em busca de uma vida melhor em Recife.

Na aventura, ele descobre que a morte é a maior empregadora da terra sertanista do Nordeste - é dela que dependem os médicos, coveiros, farmacêuticos e as benzedeiras. Por outro lado, vê que o sertão revela a união e a hospitalidade de pessoas.

O Ateliê Forte Severina conseguiu reforçar justamente essa união, algo então inédito na comunidade de Raso. As mulheres passaram a se conhecer mais e, agora, sabem dos anseios e angústia de cada uma, criando assim uma rede de cooperação entre as "severinas".

Uma mudança prática disso é que as severinas agora escolhem fins de semanas para se reunirem e cuidarem uma das outras. "Elas fazem dias de beleza para arrumar os cabelos e fazerem sobrancelhas, coisas que não existiam em uma zona rural", diz Débora dos Santos.

Atualmente, o Forte Severina conta com 13 participantes - e 13 equipamentos. Sete máquinas foram adquiridas pelas próprias mulheres depois que uma ONG, o Instituto Projeto Canudos, decidiu auxiliá-las a expandir a estrutura.

A ONG disponibilizou um curso online de corte e costura com as próprias severinas e o valor da matrícula foi revestido para compra de sete máquinas de costura, em outubro de 2019.

No entanto, para as mulheres de fato tentarem a independência financeira, o ateliê necessita de matéria-prima para produção em grande escala: doação de tecidos, agulhas e linhas de costuras.

"Temos a marca Forte Severina institucionalizada e com alguns produtos sendo feitos, mas com o decorrer do tempo e evolução delas no curso isso vai se aprimorando. Queremos trabalhar voltados para a mulher, com camisetas direcionadas com frases de empoderamento, a partir de doação", afirma Victor Bigoli, do Projeto Canudos.

O ateliê disponibiliza de uma vaquinha virtual na internet com objetivo de arrecadar pouco mais de R$ 67 mil, que devem também ser investidos na construção de um espaço próprio. Por enquanto, a meta alcançou apenas 7%. As severinas, no entanto, seguem confiantes.