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Mulheres negras desbravam o mundo: "Corpo negro viajante causa incômodo"

Sophia criou o site Pretas pelo Mundo para ajudar outras negras a viajar - Arquivo Pessoal
Sophia criou o site Pretas pelo Mundo para ajudar outras negras a viajar Imagem: Arquivo Pessoal

Breno Damascena

Colaboração para Universa

27/01/2020 04h00

"Quando você é um corpo negro viajante, causa incômodo nos outros. Estão acostumados a ver a mulher negra em situação de subalternidade." A jornalista Kenya Sade é enfática. "O preconceito se dá de muitas formas", ela explica. "Nunca me xingaram, mas o racismo está travestido nas sutilezas e no desconforto dos outros. Quando estamos fora do estado de submissão, causamos espanto. Mais até para os brasileiros brancos do que para os próprios estrangeiros", diz.

A primeira viagem de avião de Kenya ocorreu em 2010, quando tinha 16 anos e foi para Vancouver fazer um intercâmbio. "Aquilo fez meu mundo expandir", relata. Desde então, ela já passou por quase uma dezena de países da América e da Europa. "Viajar faz a gente ver o mundo de outra forma. Cada vez que você volta, uma luz diferente se acende no corpo", descreve a jovem, que agora mora em São Paulo.

A última experiência internacional de Kenya foi um intercâmbio de um ano e meio em Dublin, na Irlanda, onde teve uma surpresa. "Diziam-me que eu não encontraria pessoas negras lá. Mas, na verdade, é apenas questão de enxergar. Logo que cheguei, fiz amizade com um grupo de brasileiras e fiquei intrigada, me questionando o porquê de não ver mulheres negras nas páginas de viagem", indagou-se Kenya. A partir dessa motivação, ela criou o perfil Pretas Pelo Globo no Instagram, onde compartilha experiências de mulheres negras viajando pelo mundo.

A jornalista Kenya Sade, do perfil Pretas Pelo Globo - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A jornalista Kenya Sade, do perfil Pretas Pelo Globo
Imagem: Arquivo Pessoal

"Nós somos historicamente invisibilizadas em quase todos os âmbitos da nossa vida e estamos na base da pirâmide social. A sociedade coloca algumas pessoas em alguns lugares e dizem que as outras não podem pertencer nem participar daqueles espaços. Quero mostrar que nós existimos", justifica. A página é alimentada de forma colaborativa por mulheres negras brasileiras que estão em diversos cantos do mundo.

Visibilidade para as narrativas

O perfil criado por Kenya não é o único a dar protagonismo e visibilidade para que mulheres negras possam contar suas histórias em primeira pessoa. Entre outros, A Bitonga Travel, Negras Viajam Também e Diáspora Black destacam-se nessa proposta de tornar visível as narrativas. "Não aguentamos mais ser bombardeados todos os dias por notícias negativas em relação à população negra. É morte, miséria, pobreza? Queremos falar de pessoas negras felizes. Para as meninas mais jovens saberem que é possível conhecer o mundo", explica.

Ela acrescenta que a importância de uma mulher negra viajar vem da capacidade de pluralizar o ponto de vista, colocando-a como pertencente à sociedade. No entanto, é importante, segundo Kenya, tomar alguns cuidados antes de botar o pé na estrada. "Assim como a comunidade LGBT, por exemplo, é necessário saber em quais países você será mais respeitada. É fundamental entender quem a aceita e quais comunidades costumam ser mais racistas", pontua.

No entanto, enquanto planeja sua próxima viagem, Kenya acredita que existe uma rede de apoio que permite que as mulheres negras possam sair da zona de conforto sem medo. "Vivemos numa cultura machista, mas existem pessoas incríveis e sempre terá uma mulher ao seu lado para ajudar", aponta. "É importante conversar com pessoas que foram antes e fizeram com que esse caminho se tornasse possível. Nossos passos vêm de longe", complementa.

É bom ter companhia, mas sozinha é melhor

A publicitária Sophia Costa também percorreu essa trilha de descobertas e tornou-se inspiração para outras mulheres que desejam conhecer o mundo. A jovem entrou em um avião pela primeira vez na vida com 20 anos e fez a primeira viagem internacional para Buenos Aires, com o objetivo de comemorar a finalização do mestrado. Desde então, já conheceu 15 países. Ela conta que já fez viagens em casal, com a família e com amigos, mas nada se compara a viajar sozinha.

"Amo a sensação de liberdade. Quando você viaja com alguém, acaba ficando muito focado naquela pessoa. Sozinha, eu conheci muita gente diferente e fiz muitas coisas novas", explica. "O Brasil é querido no mundo inteiro. Se você chega em um lugar e fala que é brasileira, já faz amigos", acrescenta.

Sophia, do site Pretas Pelo Mundo - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Sophia Costa: "Enquanto a pessoa branca pode ser apenas uma viajante, eu nunca passo despercebida"
Imagem: Arquivo Pessoal

Mas nem todo o passeio costuma ser tão fácil quanto aparenta. "Enquanto a pessoa branca pode ser simplesmente uma viajante, eu nunca passo despercebida", assinala.

Sophia conta que em muitos lugares as pessoas a param na rua pedindo para tirar foto, perguntando se é modelo ou alguém famosa. "Pensam que sou muito diferente, não sou vista como alguém normal", pontua. "É comum, na rua, desconhecidos pedirem para tocar meu cabelo. É a colocação da pessoa negra no não-lugar, uma espécie de exotificação. Porém, até no Brasil eu passo por isso", comenta.

Diferentes países, recepções distintas

Para a publicitária, a perpetuação de estereótipos é frequente em alguns países da Europa. Já nos países da África e América Latina, o sentimento mais comum é de entusiasmo. "As pessoas ficam muito interessadas em saber como é nossa vida, e algumas sabiam mais de coisas da nossa cultura — como novelas — do que eu", brinca. No entanto, ela comenta que, em todas as viagens, o único lugar em que realmente conviveu com pessoas negras foi a África.

"Encontrar apenas pessoas brancas gera uma sensação de não-pertencimento. Vemos como o mundo é desigual e a renda está concentrada", justifica. Ela explica que até questões mais práticas são comprometidas pelo cenário, como encontrar o creme de cabelo certo em outros países. Essa sensação, entretanto, não é exclusiva das viagens. "Se você é uma negra de classe média, provavelmente é a única negra nos lugares que frequenta", relaciona.

Viajar não precisa ser caro

Por sempre compartilhar as experiências nas redes sociais, Sophia vem se tornando referência no tema. Diversas pessoas passaram a pedir conselhos e dicas de roteiros. "As minhas viagens me transformaram e gostaria que outras pessoas fossem transformadas também — e principalmente que as negras se sintam inspiradas." Foi com esse objetivo que ela criou um site, Pretas Pelo Mundo, portal em que ajuda as pessoas a definir o destino, pensar o roteiro, comprar passagens e escolher a hospedagem.

"As pessoas acham que é muito difícil e caro viajar, mas é possível conhecer vários lugares sem gastar tanto dinheiro. Não sou rica e minhas viagens são superbaratas", esclarece. Sophia entende que viajar sozinha dá medo, mas acredita que isso não deve paralisar quem deseja ter uma experiência do tipo. "Procure outras pessoas negras que estão viajando e converse com elas. Troque vivências, busque entender", orienta. "Viajar nos tira da zona de conforto e nos faz refletir sobre o mundo. Faz a gente pensar de forma diferente."