"Toda mulher deveria limpar o útero": como é uma reconsagração do ventre
"Gostaria que observasse a si mesma nos próximos dias. Inconscientemente, você já está se preparando para acessar as memórias celulares que estão acumuladas em seu útero e canal vaginal", dizia a mensagem que recebi pelo Whatsapp.
Pela internet, descobri que uma corrente de pessoas acredita que as emoções negativas das mulheres podem se acumular nestas partes do corpo, em especial no útero. Como ele é responsável por gestar, criar e guardar, seria necessário "limpá-lo" de vez em quando, expulsando crenças que ficam instaladas ali e que podem atrapalhar a vida.
Melhorar as relações amorosas, aumentar as oportunidades de sucesso: havia muitas promessas sobre a chamada de reconsagração do ventre na internet, mas nenhuma página deixava claro como ela era feita. Por isso entrei em contato com uma das terapeutas que oferecia o serviço e marquei um dia para vivência, que pode ser feita em grupo ou pelo Whatsapp. Escolhi a presencial. O valor da atividade é R$ 300.
Segundo a mensagem de Roberta Struzani, terapeuta que guiaria o processo, eu poderia experimentar durante aquela semana reações físicas, como enxaqueca, intestino solto, vômito e insônia. "Chamamos estas reações de expurgos. Não é nada mágico, nem religioso. É só a inteligência do seu corpo funcionando", garantiu. Ela também disse que nos próximos dias poderia ter sonhos esclarecedores e que uma ou mais pessoas que foram importantes no meu passado poderiam entrar em contato comigo.
Coincidência ou não, havia sonhado com um ex-namorado uma noite antes de receber a mensagem — algo que não acontecia há bastante tempo.
"Nada acontece por acaso"
Tirando o sonho, não tive os outros sintomas que haviam sido listados na mensagem. Quando chegou o dia, fui à casa em que a vivência aconteceria, no bairro do Tremembé, zona norte de São Paulo. No sobrado, Roberta e sua sócia oferecem diferentes tipos de serviço, tais como aulas de pompoarismo, constelação familiar e fisioterapia ginecológica. Observei que havia uma fila de mulheres para entrar na sala. Antes de nos sentarmos em cima das almofadas organizadas em roda, cada uma de nós deveria tirar os sapatos, escolher uma pedra dentro de uma caixa e um puxar um cartão com um conselho.
Quando fiquei frente a frente com Roberta, ela me disse: "Você não está aqui por acaso" e me convidou a viver aquela experiência de forma profunda enquanto borrifava um líquido aromatizado em volta do meu corpo. Em seguida, puxei um cristal de dentro do baú que ela trazia nas mãos. "Você vai trabalhar uma limpeza, purificação. É isso o que essa pedra representa", disse. Por fim, escolhi um cartão com a seguinte frase: "A vida só pode ser vivida olhando para frente".
Público diversificado
Confesso que, quando me inscrevi, pensei que a maior parte das mulheres participantes seria jovem. No entanto, assim que entrei, me deparei com um grupo de diferentes idades e estilos. A pedido da terapeuta, fizemos uma roda de apresentação. Deveríamos dizer nosso nome e o que estávamos buscando com a reconsagração. Neste momento, o clima da sala mudou: muitas se abriram, choraram e gargalharam durante a fala.
Algumas estavam ali porque se sentiam presas a um relacionamento que acabou. Uma delas foi vítima de abuso sexual na infância, outra tinha perdido um bebê recentemente. Havia também uma ex-pastora, que depois de algumas decepções com a igreja começou a buscar novas formas de exercer a espiritualidade e hoje, garantiu, se sentia mais conectada com Deus do que nunca.
A história que mais me tocou foi a da participante que estava ao meu lado e sofre com vaginismo desde a adolescência. Segundo o que disse, foi diagnosticada erroneamente por uma ginecologista como um caso de hímen complacente, também conhecido como "elástico" — por causa disso, seu hímen, que deveria ter se rompido na primeira relação sexual, continuava existindo e lhe causando desconforto. Acreditando no diagnóstico, ela se submeteu a uma cirurgia de correção.
Porém, depois do procedimento, as dores pioraram. Ela passou um período longo sem conseguir ter relações sexuais. Então, mesmo amando seu esposo, decidiu terminar o casamento, acreditando que o marido não poderia ser feliz ao seu lado naquelas condições. Tempos depois, melhorou através da fisioterapia pélvica, mas hoje carrega tristeza pelas decisões do passado.
Quando chegou a minha vez de falar, não sabia o que dizer, então fui sincera: não tinha ideia do que iria trabalhar ali. Roberta, que comentava a fala de cada uma das mulheres, me acolheu dizendo que tudo bem. "Em breve você vai descobrir".
"Entrando nua no lago"
Passamos para a segunda etapa: uma meditação guiada. Fomos convidadas a fechar os olhos e colocar as mãos sobre o ventre. "Conectadas com nosso verdadeiro eu", visualizamos exatamente quem gostaríamos de ser. Em seguida, simbolicamente, fizemos um movimento de arco e flecha com as mãos, como se estivéssemos lançando uma flecha na direção dos nossos objetivos.
A meditação continuou e Roberta pediu às participantes que imaginassem estar nuas diante de um lago escuro. "Ele representa nosso inconsciente", disse. A terapeuta nos convidou a entrar no lago e nadar bem fundo. Em seguida, pediu que acessássemos um baú dourado: nele estavam guardadas memórias. "Algumas são de luz, outras são escuras. Todas têm a mesma importância. Vá pegando cada uma na mão".
O exercício trouxe à tona lembranças muito antigas. Este foi o momento em que chorei pela primeira vez, ao me lembrar de uma cena feliz da minha infância. Ao fundo, escutava soluços das outras mulheres. Por fim, deixamos o baú, nadamos para a superfície do lago e abrimos os olhos.
"Grita, como se estivesse parindo"
Roberta nos passou alguns detalhes sobre a finalidade da reconsagração. Explicou que todas nós, ao longo da vida, nos distanciamos da nossa essência. Na sua visão, isso acontece porque, desde o ventre da nossa mãe, somos bombardeadas com as emoções e expectativas de outras pessoas. Também esclareceu que carregamos padrões familiares antigos, de parentes que nem chegamos a conhecer, no nosso inconsciente.
Sobre as relações amorosas assegurou que, durante as relações sexuais, alguns fragmentos dos homens com os quais nos relacionamos, chamados de "miasmas", ficam armazenados no útero e precisamos limpá-los. Disse que nos relacionamentos homoafetivos essa troca também acontece, porém "no campo áurico", e que por isso são mais fáceis de limpar.
Em seguida, repetimos juntas um mantra de expulsão das memórias. Então, Roberta pediu para cada uma se inclinar ou ficar de cócoras, como se estivesse em posição de parto. Começamos o exercício de expulsão: respiramos fundo, exatamente como se estivéssemos trazendo uma criança ao mundo. Alternamos a entrada e saída do ar com movimentos de contração e expulsão com a vagina, guiados por Roberta. Por fim, deveríamos gritar. Todas da sala fizeram isso: algumas gemeram, outras gritaram alto. Eu, no entanto, permaneci na posição em silêncio, apenas respirando.
Fitas e nós
Retornamos às posições iniciais e recebemos duas fitas: uma rosa e outra azul. Precisávamos passá-las sobre o útero, encontrando as memórias que acreditamos estar "grudadas" ali. Em seguida, demos alguns nós, representando as situações das quais queríamos nos livrar. Na rosa, colocamos nossas memórias familiares e padrões de comportamentos que não estavam conectados com a nossa essência. Na azul, nos lembramos das pessoas com quem nos envolvemos amorosamente.
Fiquei surpresa com a rapidez com a qual a minha mente trabalhou, pensando em diversas situações de vida. Durante o exercício, me lembrei não somente de pessoas, mas também de emoções, lugares e até cheiros. Fui uma das últimas a terminar a atividade e deixei minhas fitas cheias de nós.
O espelho, a criança e a anciã
Todas fomos instruídas a trazermos espelhos para a reconsagração. Então, chegou o momento em que deveríamos utilizá-los. Era mais uma meditação, mas desta vez, de olhos abertos e fixos no próprio reflexo. Pouco a pouco, a imagem do espelho deveria se transformar na de uma criança — a de nós mesmas anos atrás.
"Como está a sua criança?", questionou Roberta. Observamos se ela estava feliz, triste ou aflita. A ideia era permitir que a imagem infantil se expressasse livremente, rindo ou chorando. Precisávamos fazer a nossa criança interior se sentir acolhida, dialogando com ela gentilmente, com amor.
Depois, repetimos o exercício, mas nos projetando para o futuro, como anciãs. "A anciã já tem as respostas para todas as suas perguntas", disse Roberta. Visualizamos nosso rosto enrugado e sábio. Tivemos a oportunidade de conversar com a anciã e sentir a sua paz.
Tive facilidade com o exercício e ele rapidamente se tornou o meu preferido. Ao final, imaginamos as duas figuras se integrando a nós mesmas no presente. Voltamos a observar o espelho, desta vez voltadas para o aqui e agora. Em seguida, andamos pela sala e nos abraçamos, aleatoriamente.
"Seu útero é fechadinho"
Passamos para a atividade mais curiosa do ritual. Roberta pediu que nos deitássemos em círculo, de forma que cada uma ficasse com a cabeça por cima do útero da outra. Demoramos para conseguir nos ajeitar da maneira correta, mas, pouco a pouco, conseguimos. Então, a terapeuta orientou: "Agora vocês vão escutar o que o útero da mulher ao seu lado tem a dizer". Fiquei confusa. "Mas o útero faz algum barulho? E se o meu estiver quieto?", pensei.
Logo entendi que se tratava de um exercício simbólico. "Mesmo aquelas que não estão acostumadas a usar tanto a intuição conseguem escutar algo", assegurou. Como a ideia me pareceu estranha, decidi tornar a experiência mais simples e só observar as minhas emoções para dizê-las em seguida. Fiquei ao lado de uma grávida. Com medo de machucá-la com o peso da minha cabeça, tentei deitar suavemente sobre ela, o que me deixou desconfortável. Então, fizemos um momento de silêncio.
Percebi que, mesmo achando a situação esquisita, a proximidade com o ventre de uma mulher grávida me trouxe conforto. Deixei minha respiração se acalmar e fui tomada por uma onda de afeto. Ao final, nos sentamos uma de frente para a outra. Fiquei com medo de não saber o que dizer. "Fale a primeira coisa que vier a sua cabeça", fui instruída. Olhando nos olhos da mulher ao meu lado, perguntei: "É um menino?" e ela me confirmou que sim sorrindo. Detalhei então o que senti: amor, paz e um pouquinho de cansaço.
Depois, me viro para saber o que a participante que estava com a cabeça sobre o meu ventre "ouviu". Ela foi direta: "A presença da sua mãe é muito forte na sua vida", disse. "Seu útero está feliz por estar participando dessa atividade, mas seu caminho de autoconhecimento não vai acabar aqui. Você ainda tem questões a serem trabalhadas. Ele é muito fechadinho. Precisa se abrir mais para o amor", completou. Ao final, agradeci e trocamos um abraço.
"Não consigo mais"
No último dos exercícios pegamos as fitas com os nós e desamarraramos cada um deles. Antes de desfazê-los, a indicação era que buscássemos um conselho com a anciã ou com a nossa criança interna para a questão que estava sendo representada ali. Espiei ao redor e percebi que tinha uma quantidade maior de nós do que as outras mulheres. Além disso, havia colocado bastante força ao fazê-los. Alguns, tirei com facilidade, mas outros não se desfaziam de jeito nenhum. A maior parte das minhas colegas havia terminado, mas meus dedos doloridos não tinham chegado nem a metade do caminho.
"Vamos aguardar quem ainda não conseguiu", explicou Roberta. Com medo de atrapalhar as demais, eu disse que alguns dos estavam difíceis de serem desfeitos. "São as questões mais importantes para você. Busque outro conselho interior e continue tentando", ela me respondeu. Pensei em desistir, mas incentivada pelas demais continuei pacientemente até ver minhas fitas lisas como as delas.
Por fim, recebemos um óleo para ungir nosso útero. Enquanto passávamos sobre a pele, deveríamos imaginar que estávamos sendo curadas, tanto emocional quanto fisicamente. "Miomas, endometriose, infertilidade. Pense que tudo isso está sendo curado", indicou a facilitadora. Por fim, com o que sobrou de óleo nas nossas mãos, abençoamos o útero de mais três mulheres, dizendo em voz alta o que desejávamos de bom uma para as outras. Antes de saírmos da sala, nos abraçamos pela última vez, formamos uma roda e jogamos os braços para cima, deixando que "a energia positiva do que acabamos de viver se espalhasse no ar".
Eu, reconsagrada
"Fui fazer um detox no útero", brinco com as minhas amigas na noite de sábado, logo após o ritual. Percebo que na busca pelo contato com o que existe de mais feminino em nós, passamos a observar de forma mais acolhedora nossos corpos e emoções. Há quem pegue o caminho de vivências abstratas, como a da reconsagração, em busca de cura para dores de origem concreta, tais como decepções amorosas, perdas ou abusos.
Nos dias seguintes ao ritual me apego à mensagem inicial do cartão, sobre seguir em frente, e noto que estou emocionalmente mais leve. É como queimar uma foto ou jogar um objeto no lixo: funciona como uma representação simbólica daquilo que não nos serve mais e que deve ser eliminado para que possamos nos renovar. Uma oportunidade para começar de novo.
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