Bocardi foi racista? Especialistas opinam sobre questão estrutural do caso
Na internet, pessoas negras já se uniram para dar relatos sobre o que fariam se o racismo no Brasil acabasse naquele dia. "Andaria de chinelo no shopping", "Iria começar a usar o capuz do casaco", "Ficaria tranquilo ao ver um carro da polícia". Por que, afinal, a questão racial os impede de fazer coisas como essas?
A resposta pode ser a mesma que surgiu no meio de um debate provocado nas redes sociais na sexta-feira (7), por conta do caso Bocardi.
O apresentador do Bom Dia São Paulo, Rodrigo Bocardi, perguntou durante entrada ao vivo — o repórter Tiago Scheuer entrevistava um jovem negro no metrô — se o entrevistado era gandula de bolinhas de tênis de um clube de classe alta em São Paulo, Capital.
Leonel Dias prontamente afirmou que era jogador de polo aquático no clube. Por isso, usava uniforme em referência ao lugar.
Após o episódio, e as tentativas de defesa de Bocardi no Twitter, a expressão "racismo estrutural" povoou as redes sociais.
Ela existe para explicar um mecanismo, dizem especialistas, que estigmatiza homens e mulheres negras — baseando-se, inclusive, no ranço histórico que temos do período de escravização.
Para o psicanalista Allan Fernando de Souza Félix, é o racismo estrutural que faz com que pessoas negras, como Leonel, sejam vistas sempre em lugares subalternizados, ou com desconfiança e marginalizados, a ponto de não se sentirem seguros para usar chinelo em um ambiente como shopping. Entenda.
Racismo estrutural: o que é?
Racismo estrutural, explica a pesquisadora e doutoranda em Psicologia Social pela PUC-SP Eliete Edwiges Barbosa, é definido por uma estrutura "que determina o lugar onde você [pessoa negra] tem que ficar. E é de subserviência".
Ao mesmo tempo em que o racismo estrutural articula a ideia de que existem "lugar de negro" e "lugar de branco", também dá privilégios a quem é visto como branco.
"Essa estrutura pronta privilegia poucas pessoas — as brancas —, que têm um certo conforto. E, para isso, uma população fica à parte", explica. Ser racista se valendo desse pensamento, diz Eliete, não é de hoje: vem de uma construção social que pode ser replicada em vários momentos históricos do país.
Para ela, o movimento feminista brasileiro dos anos 80, por exemplo, reproduziu os mesmos padrões de discriminação estruturais. "As mulheres estavam brigando por direitos, para serem reconhecidas como mulheres. Estavam indo à luta mas, em suas casas, tinha uma mulher negra que cuidava dos seus filhos. E aí, essa mulher não era reconhecida como mulher também, porque a batalha não incluía tirá-la desse 'local determinado'".
"Lugar de negro" e o racismo por trás disso
Para o psicanalista Allan Fernando de Souza Félix, essa divisão — que faz com que Leonel tivesse sido confundido com um profissional do clube — revela a forma estereotipada com que o homem negro é visto nos ambientes em que circula.
"Ele sempre vai ser morador de periferia, sempre vai ter um emprego subalterno, e que dificilmente terá ascensão social. Por isso, é olhado com um olhar de desconfiança", pontua.
"No caso do Bocardi, é possível que, quando ele vai ao clube jogar tênis, a cor dos meninos que pegam as bolinhas é a cor do Leonel. Então, ele faz essa associação ao pensar:
Só pode ser isso. Daqui ele não passa, ele não pode ser mais. Nenhum da cor dele é mais.
Allan explica que o impacto na saúde mental e na autoestima do homem negro ao ser visto assim pode surgir desde quando ele é um menino. "A autoestima dele é 'desconstruída' desde pequeno, na verdade. Desde quando ele entra em um estabelecimento para comprar uma bala, e recebe um olhar diferente".
O racismo estrutural, assim, pode acompanhar uma pessoa negra em todas as fases de sua vida.
"Na escola, a criança vê que 99% das pessoas que ocupam cargos como diretores e professores são brancas. Já entre os profissionais de limpeza, quase sempre a maioria é negra. Ou seja, ela vê que o negro é quem ganha menos, o que a serve. A criança internaliza essa estrutura".
Por ser estrutural e envolver privilégios sistematizados, tudo aponta que "o buraco é muito mais embaixo". "Não é só 'tirar o racismo' da pessoa. Ele está enraizado nos sistemas culturais, sociais, no ambiente familiar e até nas escolhas amorosas", avalia.
Rever a estrutura, diz Eliete, gera desconforto mesmo. "É mexer em privilégios que as pessoas não querem abrir mão. As pessoas não querem limpar suas casas, cuidar do seu lixo...Porque tem outra pessoa que faz isso. E essa pessoa, para ela, é o negro".
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