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"Esqueci que fui estuprada": mulheres relatam perda de memória após abuso

É comum que mulheres apaguem da memória a violência que viveram e que as lembranças surjam anos depois - Getty Images
É comum que mulheres apaguem da memória a violência que viveram e que as lembranças surjam anos depois Imagem: Getty Images

Camila Brandalise

De Universa

18/02/2020 04h00

Foi ao começar a atender vítimas de violência sexual em um ambulatório de pacientes com HIV positivo, em 2015, que a enfermeira Daniela*, hoje com 35 anos, passou a desconfiar que poderia ter sofrido algum tipo de abuso sexual.

"Algumas pacientes que chegavam tinham sido violentadas sexualmente. Aquilo mexia comigo, me incomodava exageradamente, mas eu não sabia a razão. Cheguei a sair do emprego e procurei terapia", conta. "Até então, nem pensava que tinha sido vítima de nada. Era como se nada tivesse acontecido."

Flashes do ex-noivo passaram a surgir em sua mente quando cogitava ter sofrido uma violência, como em uma lembrança nebulosa de um sonho. "Antes disso, não sabia muito bem o que tinha acontecido para acabar o relacionamento com ele e sempre houve um pesar pelo fim, mas era só isso. Demorou um pouco para entender que eu tinha sido abusada", diz.

Justamente pelo fato de a imagem do ex aparecer constantemente em suas lembranças, Daniela passou a trabalhar com a hipótese de ter sido estuprada por ele. A confirmação veio em 2017, quando o ex-noivo enviou uma carta para ela em que mencionava o que tinha feito à enfermeira e quando — 2008, época em que ela tinha 23 anos. Foi então que Daniela conseguiu localizar temporalmente a agressão que já vinha aparecendo, ainda que picotada, nas sessões de terapia. Logo depois de receber a carta, soube que ele se suicidou.

Daniela conta que há cerca de um mês as lembranças começaram a despertar com mais intensidade. "Quando falo sobre isso, chego a sentir um cheiro específico, de sangue com fezes. Agora, contando a história para você, eu sinto esse cheiro", diz à reportagem, durante a conversa por telefone.

"O que eu lembro do dia até agora: não era só ele, tinha mais uma pessoa junto. Não me lembro perfeitamente do momento, mas me recordo do meu ex-noivo me abusando, na vagina, no ânus, na boca. Eu tentava gritar, mas me amordaçavam para que eu não pudesse fazer isso. Esses detalhes estão surgindo."

Daniela diz não se lembrar do que aconteceu depois, mas recorda uma cena, ainda muito vaga, em que estava em um hospital. "Não sei nem dizer se eu era a paciente."

Por que vítimas esquecem do abuso?

A perda total da memória de um abuso sexual acontece em cerca de 5% dos casos, segundo o psicólogo americano Jon Hopper, um dos maiores especialistas em trauma e memória dos Estados Unidos e professor associado da faculdade de medicina da Universidade de Harvard. Mas, ele afirma, é bastante comum que vítimas esqueçam de "detalhes periféricos" — informações que não são centrais e não estão ligadas às fortes emoções do ataque —, como horário ou cor da roupa do agressor, ou que elas não consigam relatar com precisão a ordem dos acontecimentos.

Em entrevista a Universa, Hopper diz que há uma série de fatores que podem levar ao "apagão". "Às vezes, a pessoa não apenas tira essas memórias de sua consciência logo após o ataque acontecer, mas também desenvolve um hábito automático de impedir que as memórias sejam recuperadas para a consciência — mesmo em situações que parecem as certas para lembrá-la", diz.

Psiquiatra do Ambulatório de Sexualidade Humana do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo) de Ribeirão Preto, Thiago Dornela Apolinário, que atende Daniela, compara a situação a um chuveiro quente: em alguns casos, quando se aumenta muito a temperatura, faz cair a resistência. "São mecanismos de proteção que impedem que todo o sistema caia. Quando a tensão aumenta é como se houvesse esse apagão temporário para a pessoa não ter que lidar com toda a carga emocional, pois pode não dar conta."

Ele, no entanto, salienta: mesmo sendo um mecanismo de proteção, o "apagão" coloca a pessoa em sofrimento. "O prejuízo vai aparecer na dificuldade da vítima em confiar nas pessoas, de criar vínculos, de se engajar numa relação sexual. E, pior, sem nem saber o motivo. Tive uma paciente que, quando iniciava uma relação, a situação despertava nela um mal-estar tão grande que ela não conseguia continuar. Hoje ela descobriu o motivo: havia sido estuprada."

O que desperta a lembrança na vítima?

Segundo Hopper, quando flashes começam a aparecer na mente, é provável que sejam desencadeados por situações que tenham alguma ligação com o episódio da violência. "Por exemplo, ser tocado por seu namorado ou marido de uma maneira que a pessoa que abusou ou agrediu você tocou em você. Ser abusado fisicamente por um parceiro e os sentimentos de impotência que isso traz podem ser um contexto poderoso que desencadeia lembranças de ser abusado sexualmente ou agredido no passado, quando se sentiu, também, traído e impotente."

Hopper compara o esquecimento de uma vítima de estupro ao que acontece com soldados que estiveram em combate e policias que foram violentamente atacados. "Não ficamos surpresos quando um soldado ou policial não consegue se lembrar da sequência exata em que eles ou seus companheiros foram feridos em uma batalha, e não devemos duvidar das memórias das vítimas de agressão sexual quando estão confusas sobre a ordem dos acontecimentos", diz.

"Todos os dias, em todo o mundo, as vítimas de agressão sexual são atacadas por isso. Mas esquecer detalhes do que aconteceu é normal. As autoridades precisam entender isso. Caso contrário, continuará se alegando que a vítima não é confiável ou está mentindo porque não lembra de tudo, o que é totalmente contrário ao que a ciência mostra."

O psiquiatra brasileiro endossa o que seu colega americano diz. "Já tive paciente que, mesmo colocada em frente ao agressor na delegacia ou a um retrato falado, não consegue se lembrar das feições da pessoa e confirmar quem foi o autor do crime", afirma Apolinário. "As pessoas duvidam: 'Como assim você não lembra?'. Mas é tão comum esquecer quanto se lembrar."

*O nome foi trocado a pedido da entrevistada.