Topo

"Descobri que sou adotada e tentei suicídio": impactos da revelação tardia

iStock
Imagem: iStock

Ana Bardella

De Universa

25/02/2020 04h00

Aos 17 anos, Renata* morava com a família em uma cidade do interior do Paraná. Filha única, frequentava a escola e tinha um bom relacionamento com os colegas, mas sofria de um quadro depressivo. Preocupados com a filha, seus pais procuraram uma psicóloga. Durante as sessões, a estudante costumava se queixar da sensação que mais a sufocava: a de não se sentir completa.

Nos nossos diálogos, sempre dizia que faltava algo, mas não sabia dizer o que"

Ela, que agora está com 19 anos, entende que estava passando por uma fase difícil: vivia um relacionamento conturbado e estava se descobrindo lésbica. Só isso seria o suficiente para desestabilizá-la, mas sempre sentiu que havia algo mais.

Sua intuição estava certa. Devido à falta de ânimo, a mãe era a responsável por marcar suas consultas. "No entanto, o celular dela quebrou, então pedi que entrasse no Facebook através do meu", conta. Um dia, recebeu uma mensagem da terapeuta na rede social e, pensando que se tratava de uma confirmação sobre uma consulta, clicou na conversa.

Mas o que leu em seguida mudou os rumos de sua vida. "Havia uma mensagem da minha mãe que dizia: 'Você sabe que ela é adotada', se referindo a mim. Em seguida, uma recomendação da psicóloga para que me contasse a verdade".

O dia de inverno ficou marcado para Renata.

Não sentia minhas pernas. Era como se o chão não existisse. Subi as escadas da minha casa gritando, completamente perdida"

Sua mãe, que estava na parte superior do sobrado, não entendeu o que estava acontecendo. "Eu não conseguia formular uma frase. Só perguntava 'por quê?', 'por quê?'. Até que reuni forças e contei o que tinha acontecido. Mas logo em seguida me tranquei no banheiro, sentei no chão e chorei de forma desesperada por mais de duas horas", relembra.

História de novela

Em Amor de Mãe, Danilo (Chay Suede) descobre que não é filho biológico de Thelma (Adriana Esteves)  - Reprodução / Rede Globo - Reprodução / Rede Globo
Em Amor de Mãe, Danilo (Chay Suede) descobre que não é filho biológico de Thelma (Adriana Esteves)
Imagem: Reprodução / Rede Globo

O drama de quem só descobriu que foi adotado na vida adulta ou próximo dela tem sido retratado na novela Amor de Mãe, através do personagem Danilo (Chay Suede). Na trama, o rapaz entende a verdade sobre suas origens através de anotações em um diário antigo da mãe, Thelma (Adriana Esteves) — e passa a procurar pela mãe biológica. Mas antes disso sofre pelas mentiras contadas ao longo da vida.

De acordo com a psicanalista Andréa Ladislau, os impactos da descoberta costumam ser profundos. "A pessoa que percebe tardiamente que foi adotada é atingida por uma avalanche de sentimentos, como se tivesse passado por uma traição. Alguns podem ficar tristes, outros muito revoltados", resume. Porém, existe o agravante de ter construído a personalidade com base na história da família, como membro sanguíneo dela. "A partir de então, informações sobre seu passado são reorganizadas e a própria identidade pode ficar nebulosa por um período", detalha.

No caso de Renata, a fase foi uma das mais complicadas da vida. Ela não conseguiu retomar a escola e terminou o ensino médio estudando em casa: passava dias e noites no quarto e chegou a tentar o suicídio. "Não conseguia entender o motivo pelo qual eles me esconderam tudo. Como minha mãe tem três amigas que adotaram, o tema sempre foi recorrente em casa. Isso nunca foi um tabu".

Refletindo sobre as experiências do passado, diz que nunca desconfiou da possibilidade. "Sou fisicamente parecida com meu pai e tenho o temperamento da minha mãe. Não havia motivos para isso", diz. A única informação desencontrada estava na certidão de nascimento. Lá dizia que a jovem nasceu em uma cidade vizinha da sua. Na única vez em que questionou os pais sobre isso, eles disseram que o cartório estava em greve e por isso precisaram se deslocar para fazer o registro. Ela acreditou.

Cartas na mesa

Depois de ser tratada com remédios e psicoterapia, Renata conseguiu conversar mais tranquilamente com os pais adotivos sobre os motivos pelos quais eles lhe esconderam a verdade. "Eles tiveram medo, preocupação. O processo de adoção não foi legal. Durante meus dois primeiros anos de vida, minha família biológica fazia chantagens financeiras, ameaçando me levar de volta. Por isso tiveram que me esconder e não contar sobre a minha existência para muitas pessoas", diz.

Quando a situação enfim se estabilizou, a mentira já era cômoda demais para mudarem de ideia. "Não tiveram coragem", ela resume. De acordo com Andrea, em casos como este, o segredo tem efeitos sobre a família toda. Manter os fatos ocultos pode transformá-los em algo muito maior do que realmente são"

Além disso, os assuntos não resolvidos na mente tendem a se transformar em comorbidades corporais. A profissional exemplifica citando o sentimento de culpa. "Se ele vem sendo guardado, a tendência é que seja externado de alguma maneira através de doenças psicossomáticas ou de de relações interpessoais disfuncionais".

Para Renata, o tempo foi o melhor remédio. "Aproximadamente seis meses depois da descoberta, minha vida foi entrando nos eixos novamente. Agora faço faculdade de publicidade e propaganda e tenho uma relação comum com meus pais. Apesar dos desentendimentos do dia a dia, eles me respeitam. Sinto que este é um dos momentos mais tranquilos da nossa relação", avalia.

Quanto à família biológica, seus sentimentos são dúbios. Por um lado, quer conhecer a mulher que chama de "genitora" e seus irmãos de sangue. Por outro, tem medo de magoar seus pais. "Eles sempre tentaram me preservar. Gostaria de fazer o mesmo por eles", comenta. Por fim, acredita que a revelação, ao mesmo tempo em que foi um trauma, foi um alívio. "Depois dela a sensação de vazio que me perseguiu durante muito tempo desapareceu", conta.

Andrea aponta que, para evitar situações do tipo, o consenso entre profissionais da área de educação é de que a adoção deve ser tratada com normalidade desde o começo da vida. "A partir dos três anos de vida, os pais já podem falar sobre isso", diz. É através do diálogo que a criança começa a ter segurança sobre a sua permanência na família, fortalecendo os vínculos com os pais, irmãos e a própria autoestima.