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Jéssica Ellen: "Mulher preta não é forte o tempo todo e precisa ser amada"

Jessica Ellen - Wendy Andrade
Jessica Ellen Imagem: Wendy Andrade

Nathália Geraldo

De Universa

27/02/2020 04h00Atualizada em 27/02/2020 14h12

Camila, de "Amor de Mãe", vive experiências muito intensas na novela. Da luta por uma educação mais justa até o esforço por ser o ponto de equilíbrio em sua família, a personagem foi pedida em namoro já no segundo encontro (o que deixou a internet surtada), se casou, engravidou, teve um aborto espontâneo e perdeu o útero — e, ao que parece, tem muitas "ferramentas emocionais" para lidar com tudo isso.

Uma cena que já se tornou icônica do folhetim, no entanto, mostra que ser "a mulher forte" não é a personalidade que a professora quer tomar para si. E é nisso que também acredita a atriz (e cantora) Jéssica Ellen, a intérprete da marcante personagem.

"É difícil desmistificar a ideia de que a mulher preta é uma grande fortaleza. Trago como diferença poder reverenciar todas essas mulheres fortes, mas também poder construir uma história um pouco mais leve para mim", conta, em entrevista para Universa.

Jéssica diz que sente que Camila foi acolhida pelo público pois há muitas mulheres iguais a ela na vida real. De fato. Universa já contou a história de jovens que se formaram na faculdade para honrar a luta das mães, por terem uma origem humilde e ainda enfrentarem o racismo no dia a dia.

Durante o papo com Universa, a atriz da Rocinha, no Rio de Janeiro, a maior favela do país, usou diversas vezes a palavra "referência" para citar as pessoas que fazem parte de sua vida. Jéssica Ellen sabe bem de onde veio — e para onde quer seguir.

Camila é cheia de nuances: além de mulher negra, é adotada, pobre, professora, "milituda". Como é representar tudo isso?
Camila é uma personagem muito legal de se fazer por causa dessas nuances. Com a família, ela é de um jeito completamente diferente da forma que se apresenta na escola, porque lá é uma figura de referência, e é muito diferente na relação dela com o Danilo. Então, como atriz, poder viver um personagem que não é uma coisa só é muito legal. Poder questionar tudo que ela questiona, tendo a história que ela tem, é a cerejinha do bolo, né?

É uma personagem profunda e que faz reflexões. Ela responde à pergunta do aluno questionando-o para que ele tenha resposta. Isso é bonito de ver. Ela é muito real. Toda semana recebo umas vinte mensagens de pessoas que dizem que são "a Camila".

Por isso que ela tem sido bem recebida pelo público, porque as pessoas se identificam: com as dores, os questionamentos que ela tem e o que ela acredita que é possível para um mundo igualitário, democrático. Ela reverbera nas pessoas.

Em que momentos você vê isso?
Como quando ela lutou para que a aluna fosse para a aula mesmo com o neném, mostrando como a maternidade influencia diretamente sobre o corpo feminino e como isso não é cuidado, não é visto. Aí, a diretora da escola fala que ela deveria ter pensado -- mas ela comenta que "uma criança não se faz sozinha".

Eu até falei disso há pouco tempo no meu Instagram, sobre como para a maioria dos métodos contraceptivos é sempre a mulher que tem que se submeter. Isso é uma coisa que as pessoas não questionam, ninguém fala nada. E eu quero que existam outros métodos, já que uma mulher fica fértil por três dias no mês, enquanto o homem é fértil o tempo inteiro. Na minha publicação, a maioria das pessoas disse que não tinha pensado sobre isso.

Como foi essa construção de pensamento sobre a liberdade do corpo da mulher?
Eu acho que isso sempre foi uma realidade para mim. Cresci numa família muito feminina: eu tenho muitas tias, muitas primas, uma família de muitas mulheres, matriarcal. Não me lembro de um momento em que eu comecei a pensar sobre isso, é como se eu já tivesse pré-estabelecido. Minha mãe não teve uma educação sexual sobre o corpo feminino como se tem e é de uma geração mais conservadora.

Mas, ao mesmo tempo, ela sempre falava da importância de a gente se cuidar: "Olha, se você não quer ter filho cedo, se quer estudar, ter carreira, nunca transe sem camisinha, ela protege de doenças". Foi um diálogo aberto, desde muito nova. Cresci com medo de engravidar e pegar doenças, mas mais velha aprendi que era uma questão de saúde.

Você ganhou as redes com a cena da mulher guerreira. Isso a surpreendeu?

Jessica Ellen guerreira cena Amor de Mãe - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Fiquei muito surpresa. Quando estudei a cena, vi que era um texto potente, bonito, emocionante. Toda equipe ficou emocionada quando a gente gravou. Mas eu não imaginava o tamanho da repercussão. E depois, claro, percebi que ia dar essa repercussão porque ela é de verdade, existem muitas Camilas no Brasil.

Então quando a gente fala tudo aquilo que a gente falou em rede nacional, no horário nobre, é muito potente dar esse recado por meio do entretenimento.

Em que momentos você se viu nesse lugar de "mulher guerreira" na sua vida?
Sempre tive uma rotina muito intensa de estudos e trabalho: saía da escola, ia para um curso, e o cansaço vem.

Mas o que acho mais difícil é desmistificar a ideia de que a mulher preta é uma grande fortaleza. É uma mentira que nos contaram. E aí o que trago de diferente é poder reverenciar todas essas mulheres, fortes, mas também poder construir uma história um pouco mais leve. A gente não precisa passar pelas dores que nossas mães, nossas avós, nossas bisavós passaram.

Sendo a nova geração, a gente precisa reverenciar quem veio antes, mas também com a possibilidade de não termos que carregar todo esse peso.

Isso também faz parte da cura da dor da mulher preta. A gente precisa ser amada e cuidada. E ninguém é forte o tempo inteiro. Nem os homens, aliás.

Até porque o machismo não oprime só as mulheres, mas os agride também — eles são ensinados a não chorar, a não lidar com suas emoções, e isso também não é bom.

Taís Araújo é uma das atrizes referências da nova geração. Você também se inspirava nela?
Ela é uma referência para toda menina da minha geração e as que são um pouco mais novas. Assim como a Zezé [Motta] foi para ela, assim como dona Ruth de Souza foi uma referência para Zezé.

A Taís abriu muitas portas, foi a primeira mulher preta a estampar uma campanha falando sobre cachos, na época em que 90% das mulheres pretas queriam alisar o cabelo. Sem dúvida, ela é muito importante, uma inspiração.

Na época que ela fez a Preta [na novela "Da Cor do Pecado"], virou meu apelido. Alguns amigos e minha família me chamam de Preta. Quando ela fez a Ellen [em "Cobras e Lagartos"], só me chamavam de Ellen, porque eu era parecida com ela. Uma vez reencontrei com professores da escola e eles me lembraram que eu dizia que um dia ia fazer novela com ela.

E como é a relação de vocês no set?

Jéssica Ellen - Wendy Andrade - Wendy Andrade
Imagem: Wendy Andrade

Hoje a gente tem uma relação de troca e de amizade. Ela é uma referência. E a Adriana Esteves também. A gente conversa muito sobre a cena. É bonito ver que nossas heroínas também têm suas inseguranças e que também têm dúvidas sobre o trabalho.

Acho que é isso que torna tudo mais potente. Você achar que nunca está pronto, que sempre pode melhorar em alguma coisa. As duas têm essa postura, que eu admiro muito.

Camila defende pautas feministas, de educação que, no fundo, também são políticas. Você se sente cobrada para se posicionar sobre isso?
Ela levanta questões com as quais eu me identifico como cidadã. Poder dar voz a isso é bom. Não me sinto cobrada, não. Acho que a gente tem que fazer o que acha importante. Quando tudo vira a obrigação, não uma escolha, ganha um peso maior. Falo sobre o que acho que devo.

Quando me iniciei no candomblé e quis compartilhar, só fiz isso porque estava feliz com a minha escolha. Não achei que isso seria um assunto para as pessoas.

Sou uma artista, uma mulher preta, tem coisas que, claro, me atravessam, e tem coisas que eu não sei. Fico muito livre para falar que não sei. Porque há esse pensamento de que toda pessoa pública tem que saber sobre tudo. E é uma mentira.

Você e Danilo Ferreira são um "casal ícone" para as pessoas negras. O que um relacionamento afrocentrado significa para você?

Jéssica Ellen - Wendy Andrade - Wendy Andrade
Imagem: Wendy Andrade

Eu acho isso muito louco. Porque pela primeira vez estou me relacionando com uma pessoa que tem a mesma profissão, trabalha na mesma empresa, e a gente está tendo que lidar com isso. A gente é muito discreto. Como sou atriz, consigo entender quando tem uma galera que fala que eu sou "a Taís dessa geração". Entendo, acho importante.

A minha relação com o Dan é muito a nossa história. A gente era muito amigo, aí acabou se apaixonando. Nem gostamos muito de falar, preferimos viver nossa relação.

As pessoas fazem projeções. Inclusive de pessoas com as quais elas se identificam... No fim das contas, acho que o afeto é muito potente, sempre.

E isso é mais importante do que falar frases de efeito sobre nós. Tudo que acho precioso na minha vida deixo no privado, e não só em relação a ele. Não posto foto nas redes sociais dos meus três afilhados, meus primos, que são crianças, por exemplo.

O vestido de casamento da Camila foi muito elogiado por trazer referências afro. Como foi a escolha?
Achei superbonito. A Marie, a figurinista, veio falar comigo. Por eu ser do candomblé, ela pegou referências. O brinco da Camila é um abebé, que é instrumento de Oxum. Fiquei feliz com a possibilidade de um diálogo horizontal com a figurinista e com o cuidado que ela teve. Ela foi generosa nesse aspecto.

No candomblé, os casamentos são diferentes. O vestido branco tem mais a ver com a Camila porque teve uma educação católica, a mãe é superdevota de Nossa Senhora. Eu brinco que quando eu casar vai ser diferente do que é considerado tradicional no Brasil. Não sei se vou casar de branco, não. Acho que vai ser de dourado.