"Aos 16, fiquei órfã e descobri que era adotada. Hoje busco minha família"
Uma adolescente mimada: é assim que Alessandra Iacchetti Braga de Almeida descreve a si mesma quando tinha 14 anos. Filha única, ela morava com os pais em um apartamento no Paraíso, bairro de classe média de São Paulo. O que diferenciava sua família das demais era o tamanho: com exceção de uma tia que vivia no litoral paulista, seus pais eram seus únicos parentes.
A mãe, uma italiana superprotetora, se dedicava em tempo integral aos afazeres domésticos. O pai, engenheiro civil e professor, era quem controlava as finanças e as questões burocráticas da casa. Enquanto a mãe tinha um perfil controlador e vivia negando que Alessandra saísse com os amigos por medo de que algo ruim pudesse acontecer, o pai tinha um perfil mais tranquilo e fazia as concessões da sua educação. A infância foi feliz ao lado deles.
Com 15 anos, porém, a vida começou a mudar drasticamente: seu pai faleceu. Com isso, a mãe se afundou em vícios, prejudicando a saúde. Em pouco tempo, também morreu. Sem parentes, ela foi viver com a família de um amigo. Mas, percebeu depois, as intenções das pessoas que a acolheram não eram as melhores: adolescente, foi vítima de um golpe financeiro.
Aos 16 anos, Alessandra decidiu morar sozinha. Mas enquanto tentava se reestabelecer, uma nova informação mexeu profundamente com as suas estruturas: ela descobriu que era adotada. Hoje, formada em pedagogia, aos 28 anos, luta para encontrar sua família biológica. A seguir, ela conta sua história:
Memórias boas, mas confusas
Minha infância foi maravilhosa. Quando nasci, meu pai tinha 60 anos e, minha mãe, 46. Nós tínhamos uma condição financeira boa. Fui uma criança mimada, sempre estudei em boas escolas, mas nossa família não era grande: eu sabia somente da existência de uma tia, que era de Santos.
Gostava muito da minha mãe, porém nossa convivência não era das mais fáceis. Ela sentia uma necessidade forte de me proteger do mundo. Aos nove anos, fiquei amiga dos filhos do porteiro do prédio de onde morávamos. Nos tornamos uma turminha inseparável: passávamos as tardes brincando juntos, apesar de perceber que a minha mãe se incomodava com essa proximidade.
Um dia, durante um feriado, eles me convidaram para ir à praia junto da família do nosso porteiro. A partir desse episódio, minha mãe se tornou uma pessoa irreconhecível. Ela não apenas me proibiu de manter essas amizades como também começou a ter delírios: achava que eles estavam tramando para cima de mim, que queriam fazer algum mal. Essa postura paranoica se estendeu por muito tempo. Ela tentava me manter presa dentro de casa e chegou a desviar o carro diversas vezes quando enquanto me levava para a escola. Não queria que eu passasse muito tempo longe dela.
Diagnosticada com transtorno bipolar, passou a tomar remédios. Minhas memórias mais antigas são marcadas pela variação do seu humor.
A primeira perda
Na nossa dinâmica familiar, meu pai era o provedor. Tinha muito apreço à sua figura, porque ele era um homem sóbrio, sensato. Mas estava doente: sofria de um câncer de próstata. Quando eu tinha 15 anos, seu estado de saúde piorou e ele morreu.
Além do luto, outra preocupação se instalou na minha cabeça: a de que, a partir daquele momento, eu precisaria cuidar da minha mãe. Afinal, era ele quem intervinha nas suas crises, quem incentivava minha mãe a tomar os remédios. Acreditei que caberia a mim fazer tudo isso, mas fui surpreendida por uma versão dela que até então desconhecia.
Minha mãe conseguiu reunir forças para cuidar de tudo: com o dinheiro que meu pai nos havia deixado, ela pagava as contas e resolvia as questões financeiras com os advogados. Ela viveu o luto de forma contida, parecia que queria se mostrar forte para mim.
Apesar de toda a força de vontade, minha mãe não estava bem. Triplicou a quantidade de cigarros que fumava por dia e passou a beber e a comer cada vez mais. Em seis meses, quase dobrou de peso. Não demorou a sentir os efeitos sobre a saúde. Um dia, cheguei em casa e um médico estava lá. Isso ligou uma espécie de alarme em mim, já que minha mãe quase nunca ia ao médico. Quando questionei o que estava acontecendo, ela me garantiu que era apenas uma gripe.
Poucas semanas depois, fui ao teatro com alguns amigos da escola. Quando voltei, entrei com eles no apartamento e nos deparamos com ela no chão e sem vida. Depois, ficou constatado que ela teve uma enfisema pulmonar. Na hora, me senti completamente perdida. Meus amigos chamaram os pais deles, a polícia também veio. Foi horrível.
Órfã aos 16 anos
Apesar de ter uma tia no litoral, acabei ficando na casa dos meus padrinhos de batismo depois que tudo aconteceu. Porém, não consegui permanecer na casa deles por muito tempo. Era uma adolescente, tinha passado por muitas coisas. Não era fácil de lidar. Quando cheguei, eles estavam com uma viagem marcada para a praia e disseram que eu deveria ir também, para esfriar a cabeça. Na época, interpretei aquilo como um desrespeito. Hoje sei que eles não fizeram por mal, mas fiquei bastante revoltada e pedi a um amigo de escola que me abrigasse na casa dele.
Arrumei minhas coisas e fui para lá. Era uma casa grande, com os hábitos muito diferentes dos meus. Na minha casa, sempre tive acesso a livros, filmes, cultura. Lá, as pessoas se reuniam na sala para jogar cartas quase todas as noites. Não havia sequer uma televisão no cômodo. Passei a me sentir muito solitária. Fiquei por lá durante um mês, mas foi o suficiente para me causar um problema financeiro gigante e que se estende até os dias de hoje. A mãe do amigo pediu a minha guarda e ela foi concedida. Na época eu tinha direito ao patrimônio dos meus pais e a uma pensão pela morte dele.
Assim que os papéis saíram, minha então tutora passou a me tratar diferente: não se preocupava mais comigo. Disse que cuidaria da pensão, porque eu era muito nova e iria gastar com bobagens. Nunca vi um centavo desse dinheiro. Mesmo sem entender que estava sofrendo um golpe, não consegui permanecer na casa por muito tempo e logo voltei ao apartamento onde morava com meus pais. A família do meu amigo não se importou, nem tentou me convencer a permanecer na casa. Mais tarde, ela me emancipou, para que não tivesse mais responsabilidade alguma sobre mim.
O que me salvou na época foi que meu pai tinha feito um seguro de vida do qual ela não tinha conhecimento. Com o dinheiro deste seguro, consegui me sustentar e pagar o condomínio até começar a trabalhar. Não sei o que teria sido de mim sem ele.
Sozinha e descobrindo sobre o passado
Antes de morrer, minha mãe me matriculou em uma escola de teatro. Eu fiz amigos lá e gostava muito de frequentar o lugar. Ali, sentia que podia viver a minha adolescência da forma como ela deveria ser: leve e tranquila. Quando fiquei sozinha, as mães dos meus colegas me ajudavam. Levavam comida, conversavam comigo, me davam conselhos. Foi por meio delas que percebi a gravidade da situação que estava vivendo e procurei os responsáveis pela pensão para explicar que estavam pagando a quantia para a pessoa errada. Com isso, ela foi suspensa. No entanto, a questão do inventário está na Justiça até hoje.
Um dia, estava em casa quando o telefone tocou. Era uma vizinha, amiga da minha mãe. Ela disse que tinha algo para me contar e foi direto ao ponto: queria me dizer que eu, na verdade, era adotada.
O momento ficou gravado para sempre na minha memória. Eu precisei sentar. Muitas coisas vieram a minha memória, incluindo partes difíceis do relacionamento com a minha mãe. Lembrei tudo pelo que havíamos passado e, pela primeira vez, o comportamento dela passou a fazer sentido. Acredito que ela tenha se sentido ameaçada a partir do meu contato com os filhos do porteiro porque eles eram de origem humilde, assim como a minha mãe biológica. Isso deve ter sido uma espécie de gatilho para a mentira que ela tentava sustentar.
Procurei a minha tia de Santos, que ainda estava viva, para confirmar a história. As informações eram desencontradas, mas não havia dúvidas: eu não era filha biológica das pessoas que me criaram. Minha mãe se chamava Maria e era de alguma cidade de Minas Gerais. Minha adoção foi ilegal: em troca de 10 mil reais, ela me deixou com meus pais adotivos. Minha mãe fez tudo às escondidas. Segundo a vizinha, ela chegou a usar barriga de enchimento para que ninguém desconfiasse.
Volta por cima e sonho de conhecer a família
Com o passar do tempo, consegui me reestabelecer. Comecei a fazer faculdade de pedagogia e fui trabalhar na área. Depois, me interessei por hipnose, me especializei e hoje sou terapeuta na área.
Nunca tive raiva dos meus pais. Sou grata a eles por tudo o que fizeram por mim e tenho saudade da época em que vivíamos juntos. Mesmo assim, me sinto angustiada por não ter certeza sobre a minha origem e ficar criando possibilidades sobre ela. Gostaria de conhecer minha família biológica e já tentei muitas vezes encontrá-la. No entanto, o hospital no qual eu nasci, Sorocabana, está fechado. Gostaria de acessar os documentos de lá para pesquisar se alguma Maria deu à luz no dia em que nasci, para enfim poder chegar até ela. De acordo com o que fui informada, posso entrar na Justiça para pedir acesso aos documentos, mas isso irá demorar. Minha esperança é de que ele seja reaberto antes para poder dar continuidade a essa jornada.
Olhando para trás, não entendo como pude passar por tantas coisas sozinha. Não tenho religião, mas não duvido que exista alguma coisa maior do que nós. Considero um milagre que eu tenha conseguido me manter viva.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.