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"Brasil contraria tratados sobre mulheres", diz advogada que estará na ONU

Assembleia na ONU, em Nova York - Spencer Platt/Getty Images/AFP
Assembleia na ONU, em Nova York Imagem: Spencer Platt/Getty Images/AFP

Camila Brandalise

De Universa

02/03/2020 04h00

A ministra Damares Alves fez sua primeira participação na Comissão sobre o Status da Mulher em março de 2019. No evento realizado anualmente pela ONU, ela afirmou que, em sua gestão à frente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, lutaria com todas as forças "para erradicar as múltiplas e inter-relacionadas formas de violência e discriminação contra mulheres".

Um ano depois, os números relacionados a esses crimes continuam altos e, mais do que isso, o governo é acusado de não investir nenhum centavo no principal programa da área, a Casa da Mulher Brasileira. Também é criticado por não ter criado programas consistentes o bastante e que avancem além das campanhas para mudar o cenário atual.

Em 2020, a 64ª edição da Comissão do Status da Mulher será realizada entre 9 e 20 de março, e os países-membros serão analisados pelo cumprimento ou não dos 12 pontos da Plataforma de Ação de Pequim, tratado internacional firmado em 1995 do qual o Brasil é signatário.

"Apesar de ter aderido à convenção, o país está construindo políticas públicas contrárias a esse e outros tratados", diz a advogada Renata Bravo, especialista em direitos humanos das mulheres e assessora jurídica do Ministério Público do Espírito Santo, que participará da conferência como membro da sociedade civil e pesquisadora da área — seu mais recente trabalho é o livro "Feminicídio: Tipificação, Poder e Discurso" (ed. Lumen Juris), em que analisa a maneira como são tratados casos de assassinatos de mulheres em processos penais.

Segundo o ministério, Damares deve participar do evento novamente neste ano ao lado da secretária nacional de Políticas para as Mulheres, Cristiane Britto. A comitiva brasileira ainda contará com parlamentares e representantes do Ministério Público e do Judiciário.

Crise no Bolsa Família fere tratado

Para Renata, que no evento deve se encontrar com membros de outros países para discutir políticas públicas de gênero, a falta de investimentos em programas para proteção de mulheres é apenas um dos pontos críticos do atual governo.

Ela aponta outra situação que vai de encontro ao que está estabelecido na Plataforma de Pequim e que diz respeito à crise enfrentada pelo programa Bolsa Família, que teve corte de R$ 3 bilhões e registra uma fila de 3,5 milhões de pessoas querendo se cadastrar.

"A plataforma fala sobre a relação entre mulheres e pobreza e aponta que é preciso garantir que elas tenham acesso aos recursos econômicos, principalmente de crédito. O Bolsa Família atua de acordo com isso, o cartão fica em nome da mulher e há estudos mostrando que o programa dá autonomia para as que vivem em extrema pobreza", explica Renata.

"A média de repasse é de R$ 190 a R$ 200 por família, e a partir do momento que a mulher tem esse valor em mãos, pode, por exemplo, sair de uma situação de violência doméstica, pode se separar do marido. Se o governo está diminuindo o repasse ao programa, está violando esse direito da mulher."

Outra relação entre miséria e violência de gênero: quanto mais pobre a mulher, mais vulnerável à exploração sexual. "Então um programa de transferência de renda, além de tratar a pobreza em si, dar alguma dignidade para sair da miséria, também afasta ou tende a afastar essas mulheres e meninas da violência sexual", afirma.

Abstinência sexual, kit gay e ideologia de gênero

Renata aponta outro ponto importante do tratado, sobre garantir o acesso à informação de jovens para que assumam sua sexualidade com responsabilidade — de novo, o contrário do que tem pregado o governo atual, que lançou uma campanha para incentivar a abstinência sexual.

"Há um embate desde a campanha de Jair Bolsonaro, um projeto politico em que não se pode falar em educação sexual, pois isso se traduz como 'kit gay' ou 'ideologia de gênero', e eles entendem que isso não pode ser discutido. Mas estão contrariando estudos científicos e a própria convenção internacional, que afirma que é unicamente a educação que vai dar dignidade para essas crianças", ressalta a advogada.

Ela lembra que a maior parte dos estupros no Brasil são praticados contra meninas por conhecidos, como pais, padrastos, tios, vizinhos — 53,8% das vítimas têm até 13 anos, levando ao dado de que uma garota até essa faixa etária é estuprada a cada 15 minutos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

"Essas crianças não têm o direito de poder esperar, provavelmente não teriam iniciado, mas foram forçadas a isso. Se não tem uma escola mostrando o que é uma violência sexual e professores e diretores abertos a ajudar, essa criança está vulnerável", explica.

O que acontece se o país não cumpre um tratado?

Não há sanções específicas caso um país não cumpra uma convenção internacional da qual é signatário. O que pode acontecer, explica Renata, é o país em questão enfrentar algum tipo de boicote, principalmente econômico.

"O Banco Mundial pode diminuir investimentos para obras internas, por exemplo, e a ONU também indica que determinado país está infringindo normas internacionais", diz.

Outra convenção a ser tratada no evento será a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, criada em 2015 e que estabeleceu 17 objetivos para serem alcançados até 2030.

Apesar de o nome dar a entender que o foco é o meio ambiente, a sustentabilidade fala, também, sobre os cidadãos. "Entra no debate, por exemplo, a erradicação da pobreza, igualdade de gênero, educação de qualidade", explica Renata.

Na opinião da advogada, o país não dá valor para ambos os tratados não por desconhecimento, mas por não querer discutir sobre direitos humanos. "Para o atual governo, esse é um ponto crucial: depois da Venezuela e do comunismo, é o inimigo número três, como se fosse coisa de 'esquerdista'", afirma.