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"Gravei meu tio confessando que me estuprava, mas temo falta de punição"

Carla Vanessa entendeu que foi estuprada durante uma aula de educação sexual - Reprodução / Instagram
Carla Vanessa entendeu que foi estuprada durante uma aula de educação sexual Imagem: Reprodução / Instagram

Ana Bardella

De Universa

06/03/2020 04h00

Carla Vanessa Venâncio da Silva, de 35 anos, faz parte de um grupo de mulheres brasileiras que, mesmo formalizando uma denúncia, não conseguem mais levar os homens que as estupraram a julgamento.

O fato a abala muito. A ponto de Carla ser capaz de se levantar e realizar suas tarefas domésticas apenas em parte de seus dias. Nos outros, ela sequer sai da cama ou abre as janelas do quarto. Nem mesmo os quatro comprimidos psiquiátricos que ingere diariamente são suficientes para dar conta da rotina. Desempregada, mora no bairro de Pavuna, no Rio de Janeiro, com a mãe, a filha de 11 anos e o irmão.

O cotidiano atual de Carla não condiz com a vida que levava até meados do ano passado. Ela, que estudou até o ensino médio, trabalhava como auxiliar administrativo em uma clínica médica, frequentava reuniões familiares e era vista como uma mulher animada. Mas sempre viveu à sombra de traumas do passado. Conforme eles foram se tornando mais pesados, a doença se agravou: Carla pediu demissão e passou a ficar reclusa.

Somente depois de uma tentativa de suicídio Carla conseguiu revelar à família a origem de suas angústias: durante boa parte da infância, entre 3 e 11 anos, foi estuprada pelo tio, irmão do seu pai.

Na época, ao expor a situação para os parentes, conseguiu um vídeo de confissão do abusador.

Na gravação, o homem confirma para a esposa que as acusações são verdadeiras. No entanto, Carla nunca viu o tio pagar pelos seus atos: a denúncia foi feita após a prescrição crime.

No caso dela, de acordo com Ariel de Castro Alves, advogado especialista em direitos da infância e da juventude, o tempo de prescrição seria 16 anos. Para ser levada a julgamento, portanto, a denúncia deveria ter sido feita até os 27 anos. O advogado confirma que, mesmo com a confissão, não é mais possível punir o abusador de acordo com a legislação brasileira.

"É triste, é lamentável, mas infelizmente não cabem recursos", opina. De acordo com o profissional, mesmo a lei Joanna Maranhão, que, no caso de Carla estenderia em sete anos o tempo de prescrição do crime, não pode ser aplicada, uma vez que ela entrou vigor em 2012 e só é válida para os casos de abuso cometidos a partir desse período.

Já na opinião de Vanessa Paiva, advogada do Instituto Paiva que participou do processo de criação da Lei Maria da Penha, existe esperança. "O caso de Carla Vanessa é emblemático, uma prova de como a legislação atual não dá respaldo completo para mulheres e crianças. Como o Brasil é signatário de vários tratados internacionais de direitos humanos, podemos apelar internacionalmente para que a ONU intervenha no caso", afirma.

Sem desistir da justiça e a fim de extravasar os sentimentos, Carla Vanessa administra páginas do Facebook nas quais incentiva quem passou pelo mesmo a denunciar.

A seguir, ela relata sua história:

Primeiras lembranças

Carla Vanessa - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Carla Vanessa na infância
Imagem: Acervo pessoal
"Quando era criança, vivia com meus pais e meu irmão em uma casa simples no Morro do Juramento. A relação entre meu pai e minha mãe não era das mais fáceis. Ele era um homem autoritário, violento. Já ela trabalhava muito para o sustento da família. Uma das recordações que tenho é a de que ela lavava roupa de domingo a domingo. Quase nunca tinha um dia de folga.

O primeiro abuso do qual me lembro aconteceu na minha casa. Aproveitando que ela tinha saído para fazer uma entrega, meu tio, que estava cuidando de mim, colocou o pênis de maneira forçada na minha boca. Quando eu fechava, ele me fazia abrir novamente. Na época, ele estava com 15 anos. Eu, com 3.

Depois, passei a brincar com outras crianças da família no quintal do meu avô. Muitas vezes era ele quem cuidava dos mais novos — e gostava de inventar 'brincadeiras' no quarto.

Durante uma dessas ocasiões, ele me estuprou pela via anal. Mais tarde, meus pais notaram um sangramento e me levaram ao médico. Lá, disseram que eu tive uma intoxicação alimentar e fui liberada.

Acredito que depois dessa ocasião ele tenha parado por um tempo com os abusos que envolviam penetração. Das vezes seguintes em que fui levada ao quarto, ele se esfregava em mim. Lembro de manifestar meu desconforto, dizendo que a brincadeira estava chata, pedindo que ele parasse. Como resposta, escutava sempre: 'o titio já vai acabar'.

Chantagem emocional e bloqueio

Não conseguia dizer a ninguém o que estava acontecendo. Primeiro porque ele reforçava o tempo todo que eu era uma menina boazinha, que não contaria para ninguém. Depois, porque não tive orientação sobre o tema em casa. Não tínhamos qualquer abertura para tocar em assuntos relacionados ao corpo e à sexualidade com as pessoas mais velhas.

Não consigo me lembrar de tudo com clareza. Algumas memórias foram bloqueadas da minha mente e, sinceramente, não quero acessá-las.

Mas me recordo da última vez em que aconteceu. Eu estava com 11 anos, novamente na casa do meu avô. Lá havia um corredorzinho com uma cama. Estava dormindo quando senti um peso nas costas. Ao acordar, percebi que era ele atrás de mim, praticando penetração anal.

Pedi: 'Para, pelo amor de Deus! Está doendo', mas ele tampou minha boca com violência. Sempre fui uma menina pequena, magrinha. A mão dele bloqueou a passagem de ar da boca e do nariz. Naquele momento, achei que fosse morrer. Só então percebi que aquelas atitudes eram erradas.

Educação sexual: o ponto de virada

Fui criada de forma inocente. Até os 12 anos ainda brincava de boneca. Só fui tomar consciência do que havia acontecido durante uma aula de educação sexual na escola municipal na qual estudava, quando estava na oitava série. Meu professor explicou o que era sexo e as consequências dele. Falou sobre os tipos de preservativo, sobre pílula anticoncepcional.

Meu primeiro pensamento foi: 'Será que eu engravidei?'. Com isso, tive um estalo. Nunca mais fui a mesma pessoa.

Eu era uma excelente aluna, tinha o sonho de ser psicóloga. Estudava muito, tinha notas altas, mas me travei. Comecei a me autossabotar. Se dava início a um curso, por exemplo, não terminava. Até hoje não me considero capaz de ficar no mesmo emprego durante muito tempo. Se percebo que estou crescendo profissionalmente, já quero sair.

Dificuldade nas relações

Tive minha primeira relação sexual consentida aos 18 anos. Mas não me sentia dona do meu corpo. Casei aos 23, tive dois filhos.

Meu primeiro contato com o feminismo foi aos 26. Só então percebi que não deveria somente dar prazer aos homens. Eu também poderia ser amada.

O problema é que eu sabotava meus relacionamentos. Como meu tio, depois dos abusos, dizia que me amava e me elogiava — ele falava, por exemplo, que meu cabelo era lindo —, manifestações desse tipo inconscientemente me remetiam ao abuso. Então arranjava diversos tipos de confusões que me impediam de viver as relações de forma saudável.

Quando a bolha estourou

Continuei encontrando com meu tio em ocasiões familiares. Ele não abusou mais de mim, mas gostava de se manter próximo. Durante um tempo, isso me incomodava, mas não parecia me afetar tanto. Fui uma mulher animada. Gostava de ir às festas, de dançar.

Meu sorriso sempre escondeu um segredo. E aos poucos meus sentimentos negativos se tornaram insuportáveis.

Comecei tomando remédios para dormir receitados por um neurologista. Depois, iniciei a terapia. Essa foi a primeira vez em que consegui falar sobre os abusos. Entendi que estava com depressão. Fui medicada, mas, mesmo com o auxílio das drogas, não melhorava. As doses só aumentavam e, mesmo assim, eu só conseguia pensar em tirar minha vida.

Em uma das sessões, a psicóloga com a qual me consultava disse que só havia duas alternativas: ou eu contava para a minha família sobre o que aconteceu, ou meus sentimentos ruins se tornariam cada vez maiores e eu acabaria tentando o suicídio. Ela estava certa. Sem coragem de falar, tentei tirar minha própria vida.

Sobrevivi ao episódio e contei para minha mãe tudo o que havia acontecido. Ela se sentiu muito culpada por não ter percebido antes e ficou do meu lado. Hoje, é minha maior apoiadora. Meu irmão também me defendeu. Fiquei imensamente aliviada quando uma prima, que costumava brincar comigo na infância, confirmou que se lembrava de um comportamento suspeito do nosso tio: sempre que me levava ao quarto, ele passava muito tempo comigo lá dentro com as portas fechadas.

Com o apoio deles, confrontei pela primeira vez meu tio e fiz a gravação da sua confissão.

Logo depois, registrei um boletim de ocorrência, mas a investigação não foi para frente porque o crime prescreveu. Mesmo assim, tomei coragem para falar abertamente sobre o assunto e sinto que, a cada vez que conto minha história, minha dor se torna um pouco menor. Mas o preço foi alto: minha família paterna, incluindo meu pai, não fala mais comigo.

Motivada pela minha dor, mantenho páginas no Facebook onde posto relatos anônimos de mulheres que já passaram pela mesma situação. Ao todo, tenho 5 mil seguidores. Procuro conversar e ajudar. Apesar de tudo, não consegui retornar ao trabalho. As dosagens dos medicamentos que tomo me dão sono e deixam minha visão embaçada, fazendo com que eu não consiga me concentrar.

Hoje, o que me faz chorar é pensar que ele não vai ser punido. De tudo o que passa pela minha cabeça, isso é o que mais me abala.

Por isso, tento incentivar quem eu posso a denunciar."

Outro lado

A reportagem tentou contato com o tio de Carla, mas ele não retornou até o fechamento desta matéria.