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Ela é juíza de concurso de cerveja: "Sim, mulher bebe e entende do assunto"

Júlia Reis, juíza de concursos de cerveja, dá aulas da bebida artesanal e luta por mais mulheres no universo cervejeiro - Arquivo Pessoal
Júlia Reis, juíza de concursos de cerveja, dá aulas da bebida artesanal e luta por mais mulheres no universo cervejeiro Imagem: Arquivo Pessoal

Marcelo Testoni

Colaboração para Universa

07/03/2020 04h00

"Mulher não bebe muita cerveja." "Você quer um suco ou uma cerveja levinha?" "Nossa, uma mulher que entende de cerveja!"

Pelo fim de comentários machistas desse tipo, que cansou de ouvir, mas também movida pela paixão que tem pelo universo cervejeiro e em busca de encorajar mais mulheres a ingressar nele, que Júlia Reis, de 34 anos e moradora de São Paulo, especializou-se em cervejas e hoje, além de juíza em concursos de fabricação da bebida, é sócia e professora de uma cervejaria-escola e membro ativo de um coletivo de cervejeiras feministas.

Batizado de ELA (sigla para Empoderar, Libertar, Agir), o grupo no qual Júlia faz parte foi criado em 2016 com a participação dela e de dezenas de sommelières, mestras-cervejeiras, blogueiras de gastronomia e outras profissionais que têm por hobby produzir e aprender sobre cerveja. Em menos de cinco anos, obteve avanços notáveis.
"A princípio, desenvolvemos uma cerveja que as pessoas não associam à imagem da mulher, bem alcoólica e potente, para mostrar a nossa força, e que reuniu cervejeiras de todo o Brasil", afirma Júlia.

"Foi um projeto fantástico, pois todas se envolveram voluntariamente e a renda da venda dessa cerveja foi encaminhada para uma ONG que trabalha com empoderamento feminino e ajuda mulheres vítimas de violências."

Rede de apoio e conscientização

Aula de cerveja para mulheres - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Na Sinnatrah Cervejaria-Escola, ela pretende formar turmas só de mulheres
Imagem: Arquivo Pessoal

Na sequência, ao perceber que tinham potencial para avançar e produzir mais que uma cerveja, Júlia e as demais colegas se mobilizaram para despertar um processo de conscientização em bares, restaurantes e até mesmo dentro da indústria da cerveja. Na prática, promoveram rodas de conversa, palestras, debates e discussões para combater o preconceito contra mulheres consumidoras e que estão presentes na cadeia de produção, além de tentar atrair quem nunca teve contato com o meio cervejeiro, mas tem curiosidade.

"Com o lançamento da cerveja, estivemos em vários estabelecimentos de diversas capitais brasileiras e aproveitamos para discutir essas questões e falar do papel da mulher", conta. "Essa iniciativa aproximou muitas de nós que estamos no mercado e, embora o projeto não esteja atualmente produzindo nenhuma nova cerveja, mantemos nosso fortalecimento interno e pretendemos criar outros produtos, para com eles promover mais discussões no espaço cervejeiro."

A rede ainda serve de canal para que as integrantes indiquem e ajudem a dar exposição a profissionais que estejam no início da carreira. Quando alguma passa por um problema, como uma situação sexista, elas se mobilizam para mapear sua origem e seus autores e solucioná-lo. Além disso, desde a criação do ELA, Júlia diz ter percebido vários outros engajamentos entre confrarias femininas — reuniões para degustar e estudar a produção caseira de cerveja.

Por mais mulheres cervejeiras

O envolvimento de Júlia com cervejas começou há dez anos, depois que ela, formada em comunicação e marketing, mas também idealizadora de um blog de comida e com experiência de trabalho em vinícolas e importadoras de vinho, estabeleceu uma confraria feminina como passatempo. A partir daí, começou a trocar informações e aproximar-se de profissionais de bebidas, até que foi estudar sobre o assunto e conheceu seus atuais sócios da Sinnatrah Cervejaria-Escola.

De lá para cá, além de integrar o ELA, ajudou a disseminar e dar visibilidade no Brasil à tendência de se produzir cervejas artesanais e capacitou mulheres nessa atividade. "Fiz parte de um dos primeiros grupos exclusivos de mulheres degustadoras e que se aventuravam a fazer cerveja por conta própria. Hoje, dou aula em cursos de fabricação de cerveja e de outros fermentados, de degustação e também consultoria para cervejarias", enumera.

Avaliação de cervejas profissionais e caseiras

Júlia tem ainda uma empresa particular de análise sensorial e estilos de cervejas e nos últimos anos, após tirar uma certificação especial, começou a atuar como juíza de concursos e campeonatos de cervejeiros, tanto no país como fora dele. "Adoro participar de campeonatos e concursos de cervejeiros. Eles se dividem entre, principalmente, concursos para cervejeiros profissionais e hobbistas — cerveiros caseiros que não vendem, mas que produzem para consumo próprio."

Nos concursos, ela bebe várias amostras de cerveja e as avaliam em relação às características do estilo base da bebida. "Para entender: uma Pielsen, por exemplo, tem uma série de características que a cerveja deve ter e outras que não deve. A gente pontua de acordo com isso, sem saber a cervejaria, a marca, ou o cervejeiro", afirma. "Já perdi a conta de quantos concursos participei."

Como professora e sócia da Sinnatrah, ela também promoveu ações de grande visibilidade no meio cervejeiro e que podem ser encaradas como iniciativas sociais, como um curso por valor simbólico em parceria com a cervejaria Goose Island, atualmente controlada pela multinacional AB InBev, que foi lançado em 2019 e destinado exclusivamente para mulheres que não têm condições de investir em conhecimento técnico em cerveja artesanal.

Atualmente, sua escola disponibiliza apenas cursos com turmas de gênero misto, mas em breve Júlia promete lançar mais edições exclusivas para mulheres, propondo algum benefício diferente e comprometido em instruí-las sobre seu papel e as perspectivas de mercado.

Presença feminina em ascensão

Do total de alunos dos cursos da Sinnatrah, em média 25% são mulheres, de 20 a 50 anos, aponta Júlia. Pode parecer pouco expressivo, mas segundo ela a participação feminina tem crescido e o próprio mercado de trabalho tem hoje várias cervejeiras que atuam em diversas linhas de frente e não param de querer se especializar para driblar a concorrência masculina.

"Nós demos um grande passo, desmitificando a ideia de que só homem bebe cerveja e que essa bebida é feita por eles e para eles. Até o mercado publicitário se sente constrangido em objetificar a mulher, porque nos percebeu como público consumidor e a publicidade sexista já não é mais bem aceita. Mas o desafio continua, porque envolve outras questões, como equidade salarial e de condições de trabalho e até mesmo oferta de vagas", explica Júlia.

Ela também espera que em breve as cervejarias, tanto as consolidadas como as novas, contem com profissionais mais bem preparados para receber e saber lidar com essa nova geração de mulheres que vêm para ocupar não só cozinhas e fábricas, mas também cargos corporativos, de gerência e diretoria.

"A qualquer degustação que conduzo levo uma cerveja de uma cervejaria que é de uma mulher, ou menciono o nosso papel na história da bebida e como estamos voltando a ocupá-lo. Também explico sobre patriarcalismo, independência financeira e opressão", conta.

Do outro lado, o de consumidora, quando não é bem atendida faz questão de chamar a atenção de garçons e até mesmo de gerentes e donos de estabelecimentos. "Quando me oferecem bebida doce falo que o paladar é uma construção e que os homens também têm dificuldade em assumir suas preferências, porque se sentem na obrigação social de se mostrarem machões o tempo todo. Enfim, tento debater e expor isso ao máximo."