Após mais de 2 anos, STF retoma análise sobre doação de sangue por gays
Prestes a fazer uma cirurgia, a mãe de Fernando* precisou de doadores de sangue. A família se mobilizou, avisou outros parentes e todos foram até o Hemocentro de Recife. Tios e irmãos de Fernando passaram pela triagem inicial com a enfermeira e logo foram levados para as poltronas para a retirada do sangue. Mas na hora dele, o caminho foi inverso, para fora da unidade, por ser homossexual. "Não pude doar sangue."
A situação é fruto de uma legislação que impede a transfusão de sangue por homens que mantiveram relacionamento com outro homem nos últimos 12 meses. Para derrubar a restrição, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) desde junho de 2016. Parada há mais de dois anos, a votação está prevista para ser retomada hoje.
Na época, Fernando iria ajudar a família a completar a exigência de três bolsas de sangue para a cirurgia de retirada de uma das mamas da mãe dele. O procedimento ocorreu após as sessões de quimioterapia e radioterapia devido a um câncer detectado no estágio inicial. Para ele, ter sido impedido de fazer a transfusão não foi uma surpresa. Dois anos antes, um amigo gay dele não pode doar após o pai ter sofrido um AVC. "Desta vez eu já estava até conformado. Como eu tinha vivido experiência com um amigo, que ficou bastante revoltado, nem me dei o trabalho de discutir", conta Fernando.
Segundo estimativa da ONG All Out, mais de 18 milhões de litros de sangue são desperdiçados anualmente devido à restrição. Para o cálculo, foi levado em conta quatro transfusões anuais dos 10,5 milhões de homens autodeclarados homossexuais e bissexuais, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em 2016, quando a ação começou a tramitar no Supremo, a organização circulou por São Paulo com centenas bolsas de sangue como crítica à legislação. Neste ano, a All Out hospedou um abaixo-assinado contra a restrição, que deve ser encaminhado para os ministros.
Para a gerente de campanhas da entidade, Ana Andrade, a restrição à transfusão por homens gays contrasta com a escassez dos estoques dos bancos de sangue. "São pessoas que poderiam estar doando. Tem muito banco de sangue que sofre para conseguir doadores. Você abrir espaço para parcela grande da população é um benefício para qualquer pessoa", salienta. Além disso, a retirada da restrição beneficia inclusive mulheres transexuais, que mesmo após a mudança de nome ainda são consideradas homens pelos hemocentros. "Isso é transfobia institucional. É uma violência para essas pessoas, primeiro porque elas não são homens e segundo porque estão sendo impedidas a doar", observa Ana.
Agora, a ação depende somente do voto do ministro Gilmar Mendes para ser definida. Registrada em 2016 no STF, a ação começou a ser votada no ano seguinte. Na época, quatro ministros — o relator Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux votaram pela derrubada do veto. O ministro Alexandre de Moraes votou a ação como parcialmente procedente. No final do ano passado, Mendes pediu mais tempo e o julgamento foi remarcado.
Para a advogada especialista em direito homoafetivo e desembargadora aposentada Maria Berenice Dias a retomada da votação ocorre em um período delicado no país, marcado por ataques do próprio presidente Jair Bolsonaro à comunidade LBGT e às mulheres. "O preconceito só aumentou no atual governo. São pautas retrógradas, inclusive na educação, proibindo educação sexual. Querem manter o machismo, de que a mulher tem de obedecer o homem. É uma situação bem preocupante."
Maria Berenice atua na ação como amicus curiae - ou amigo da corte, que auxilia com provas e esclarecimentos. Para a advogada especialista, a restrição da doação de sangue por homossexuais é, na verdadeira, preconceito velado. "É uma designação preconceituosa, que os homossexuais tem vida promíscua. [Na legislação] Eles nem dizem homossexuais, mas homens que mantém relações com outros homens. Óbvio que a questão toda é a manutenção de relações sexuais anais. Mas não é só os homossexuais que mantêm relações anais. Se a causa é essa, deveria perguntar para todo mundo."
Para a advogada, houve avanços significativos na medicina que possibilitam detectar a presença da AIDS mais rapidamente. Maria Berenice espera uma votação unanime, favorável pela derrubada da restrição. "Acho que é indispensável que mais uma vez Supremo se posicione e assegure direitos da população LGBT."
Mesmo se aprovado, efeito pode demorar
Mesmo com a derrubada da restrição da doação de sangue por homens gays, as mudanças podem, na prática, demorar para surtir efeito. A gerente de campanhas da All Out acredita que haverá um período de transição para assimilação das alterações pelos hemocentros."A gente não sabe ainda em que termos o STF vai aprovar isso. Se é que será aprovado."
Já Fernando prevê um processo trabalhoso pela tradição enraizada nas instituições de saúde de rejeição de gays na doação de sangue, preconceito generalizado no país e fragmentação da comunidade LGBT que se relaciona em grupos distintos, de forma desunida. "Você vê o gay masculino que não quer se relacionar com a bicha pintosa. Vê as travestis que só andam com as travestis", complementa.
Mentir para doar
Para driblar a restrição, há quem omita ser homossexual. Fernando conta que na época que precisou fazer a transfusão para a mãe, amigos o orientaram a disfarçar, negar ser gay. "Todos os meus amigos diziam isso. Falavam "quando for a hora diz que não é veado senão vão barrar na hora". Mas não tem como não dizer. Dá para ver na cara", conta.
A gerente de campanhas da All Out encara a mentira como uma violência da identidade. "Negar ser quem é para fazer alguma coisa não seria aceitável para nenhuma parte em outras situações. Por exemplo, eu quero esse emprego, vou mentir que não sou gay porque a empresa é claramente homofóbica?", entende.
Restrição existe desde 1993
No país, a primeira portaria que restringiu a doação de sangue por homossexuais foi editada em 1993 pelo Ministério da Saúde. Na época, a preocupação com o HIV, que se alastrou rapidamente, fez com que se criasse medidas para restringir a transfusão de sangue, uma das formas de transmissão da doença.
Segundo a petição inicial da ADI, movida pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e apoiada por uma série de ONGs e órgãos como a Defensoria Pública da União, a grande preocupação sempre girou em torno da janela imunológica ou janela silenciosa, que é o período imediatamente posterior à infecção no qual os exames laboratoriais ainda não detectam o vírus no material sanguíneo coletado. Com os avanços tecnológicos, a janela imunológica baixou de oito semanas para 15 dias.
Em 2002, uma resolução da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) alterou de permanente para temporária a proibição da doação de sangue por homossexuais. Entretanto, foi colocada exigência de não manter relações sexuais com outros homens por um ano. Na época, o texto foi bastante criticado, mas apenas em 2011 o Ministério da Saúde publicou uma portaria salientando que a orientação sexual "não deve ser usada como critério para seleção de doadores de sangue, por não constituir risco em si própria", segundo o texto.
O "avanço" durou pouco tempo. Em 2014, uma nova resolução da Anvisa definiu como inabilitados para a doação sanguínea os homens que tiverem se relacionado sexualmente com outros homens nos 12 meses anteriores à coleta do sangue. Já em fevereiro de 2016, o Ministério da Saúde editou uma portaria com texto semelhante. A petição inicial da ADI reforça que em "atitude paradoxal" foi mantido trecho que "prevê que os serviços hemoterápicos deverão ser isentos de qualquer discriminação por orientação sexual". Desde então, os dois textos estão em vigor.
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