Como foi enfrentar 10h de voo do Brasil para Portugal no meio da pandemia
Eu e meu companheiro decidimos nos mudar para Europa em 2018. Em setembro de 2019, soubemos que iríamos morar em Lisboa. Por mais que tivéssemos estudado todos os passos com muito cuidado, não havíamos incluído uma pandemia em nosso cronograma.
O novo coronavírus, causador da covid-19, começou a ser noticiado em dezembro. Mas até aí, parecia ser algo restrito à província de Wuhan, na China, o que não atrapalhou a mudança de meu companheiro para Portugal em janeiro. Eu continuei no Brasil por conta dos nossos três gatos, que estavam passando pelo processo de documentação para terem sua entrada liberada na União Europeia.
Minha mudança para Portugal estava prevista para acontecer hoje, dia 20, com passagens compradas. Na semana passada, meu companheiro já estava em esquema de home office em Portugal, porque o coronavírus já se disseminava em Lisboa.
Na última quarta, Portugal somava 642 casos de pessoas infectadas com coronavírus. Número que cresceu rápido, em poucos dias. No dia anterior eram quase 200 casos a menos. O país é conhecido por ter uma grande parcela idosa: segundo o Prodata, órgão de estatística português, cerca de 23% da população de 10,2 milhões de portugueses tem mais de 60 anos, ou seja, quase um a cada quatro —o que gera mais tensão, tanto no governo como na população.
No Brasil, em contrapartida, a vida seguia. Dividia com amigos o temor que eu nutria pelo vírus, mas a maioria achava exagero —como muita gente ainda.
Meus planos mudaram em questão de horas. Na tarde dessa segunda-feira, quatro dias antes do meu embarque, a comissão da União Europeia aconselhou os países do bloco a fecharem suas fronteiras para estrangeiros por pelo menos 30 dias. Se isso acontecesse, eu e meu companheiro ficaríamos separados por tempo indeterminado.
Só me restava correr. O que tinha era uma passagem na classe executiva, que seria bancada pela empresa do meu companheiro, para o dia seguinte. Foram cinco horas me revezando entre fechar as malas e superar as linhas congestionadas por pessoas desesperadas como eu para convencer as atendentes da companhia aérea a liberar a viagem para os três gatos. Eles tiveram que ficar. E minha sensação era de estar fugindo de uma catástrofe.
Encarando um voo de mascarados
O Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP) tinha poucas pessoas na terça, a maioria estrangeira. Muitos passageiros estavam vestindo máscaras, inclusive eu. Entre os funcionários, no entanto, o uso parecia ser optativo.
A fila de check-in estava enorme. As lojas do free shop, vazias. Às 15h, sentei para comer minha primeira refeição do dia. Na lanchonete, comentei com passageiros ingleses que estava indo para Portugal. "Vamos ver se consigo entrar", disse, revelando para mim mesma o pavor de voar sabendo que decisões do meu país de destino poderiam mudar a minha vida.
A Alemanha já havia barrado imigrantes. O mesmo podia acontecer comigo.
Não me toque
A diferença entre como a Europa está vendo a pandemia de covid-19 e como o assunto estava sendo tratado no Brasil ficou evidente quando pisei no avião. Ao embarcar, os comissários usavam luvas e máscaras. Mal respiravam enquanto passávamos para nos sentar. Pouco antes de decolar, o aviso: por conta da situação sanitária, o serviço de bordo do voo de 10 horas, que em tempos menos caóticos contava com jantar e café da manhã, seria reduzido.
Os comissários evitavam andar pelos corredores. Ao entregar a bandeja com o meu jantar daquela noite, a comissária se esforçava visivelmente para não tocar em mim, ou mesmo na mesa dobrável. Mesmo usando luvas. Os pratos, acompanhamentos e sobremesa estavam todos cuidadosamente embalados. "Peço desculpas por não desembalá-los, mas esta é a melhor forma de evitarmos qualquer contaminação", disse ela para mim. Lencinhos umedecidos estavam disponíveis no voo.
Para retirar a bandeja e guardanapos que usei durante a refeição, as funcionárias usavam as pontas dos dedos. Quem viu a série "Chernobyl", da HBO, sabe que, na cidade onde a tragédia aconteceu, não se pode pegar itens no chão por conta da radioatividade. Entendi a sensação de que itens "inofensivos" como talheres poderiam ser perigosos.
A gente sabe, o vírus pode sobreviver por horas e até dias em superfícies como talheres e mesas. Por isso, quando uma pessoa está doente, o recomendado é que ela fique em isolamento absoluto.
Corrida para imigração
Na segunda-feira, quando a comissão da União Europeia fez a recomendação de fechamento de fronteiras, o aeroporto de Lisboa virou um caos. O mesmo aconteceu no dia seguinte. Por isso, me orientaram a correr o mais rápido possível até a imigração para evitar filas e ficar exposta à contaminação. Deu certo.
Na espera pelas malas, as pessoas se mantinham o mais longe possível uma das outras. Muito diferente daquela disputa por um lugar na beira da esteira que costuma acontecer. Peguei a minha bagagem e saí para o saguão. Estava aliviada, tinha conseguido.
Sem romance no desembarque
Achei que meu marido estaria me esperando, imaginando aquela cena clássica de filme. Não estava. Como medida de segurança, só viajantes com bilhete de embarque poderiam entrar no aeroporto.
Ele estava vivendo a rotina de um país em estado de alerta por causa do coronavírus há pelo menos uma semana e meia. Parece pouco, mas já é muito diferente da postura de uma pessoa como eu, que estava em um país em que o presidente saiu do isolamento para abraçar apoiadores. A gente se abraçou, chorou, nos beijamos. Quando passei as mãos no rosto dele, ele desviou e sacou o álcool em gel.
Fora do aeroporto, fitas e funcionários em todas as portas evitavam a aglomeração de pessoas por ali. A distância social havia se tornado coisa séria, com gente parando há metros de nós para abrir passagem. O motorista que nos levou para casa usava luvas, não falava e tinha um pote de álcool em gel nas mãos.
Chegamos em casa e respirei aliviada, Meu companheiro, não. Me fez lavar as mãos e passou álcool em gel nas chaves e nos celulares.
Na mesma noite, Portugal declarou estado de emergência. O país não permite mais desde a meia-noite do dia em que cheguei, a entrada de estrangeiros ou saída de portugueses. Por pouco, o coronavírus não separou minha família. Viajei 10 horas e cheguei no futuro: 10 dias à frente do que pode acontecer no Brasil.
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