Com carro de som e trilha da Globo, Paraisópolis espalha dicas contra vírus
"O Covid-19 mata! Ficar em casa é um ato de amor e respeito. Só saiam de casa em caso de emergência. Nossa comunidade está exposta ao coronavírus e, devido às nossas condições precárias, o vírus pode se espalhar", anuncia um carro de som espremido pelas vias estreitas e cheias de gente, carros e motos de Paraisópolis, segunda maior favela da capital paulista. O aviso é embalado pela trilha do plantão da Globo.
O motorista é Marcelo Cardoso, 36, pai de duas crianças, uma de 6 e outra de 12. Sua esposa está grávida e ele mora no mesmo quintal com o pai idoso. "Eu estou preocupado desde fevereiro. Dirijo trio elétricos desde o Carnaval e eu estou usando máscara desde lá. O pessoal me via no bloco e achava que era fantasia", diz, ele. O veículo é filmado por celulares, recebe gestos de apoio e também de indiferença. Manobra por ruas sem saída e fica preso em engarrafamentos.
"Você pode me arranjar duas máscaras, para minha mãe idosa?", pede um homem que surge na janela do motorista. Marcelo o orienta a procurar por uma na associação de moradores. "Você viu na Itália lá? É muito óbito, mas as pessoas ainda estão começando a acreditar aqui mesmo", continua. Ele aponta para um dos becos onde jovens foram pisoteados até a morte após a ação da polícia. No final de semana, páginas no Instagram anunciaram o cancelamento do baile da D17, que manteve-se ininterrupto mesmo após às cenas de violência -e que agora dá uma pausa por causa do coronavírus.
Atenção à pandemia começa a crescer no bairro
Além do alerta emitido pelas caixas de som, boatos e fake news sobre infectados e casos confirmados aumentaram a tensão na comunidade. Até então, o tema era tratado em um misto de humor, fé, incredulidade e algumas poucas máscaras cirúrgicas. A informação repassada era de três casos confirmados entre moradores do bairro. A Secretaria Estadual de Saúde, porém, afirmou que não divulga dados detalhados sobre o bairro a qual os pacientes pertencem.
Nesta segunda (23), dirigindo pelo segundo dia nas ruas do bairro, Marcelo notou menos pessoas nas ruas e mais comércios fechados. "No domingo, isso aqui estava lotado de gente e tudo aberto", diz.
Segundo a associação de moradores, existem cerca de 14 mil pontos comerciais em Paraisópolis. O número é formado por mercados, farmácias, restaurantes, cabeleireiros, sacolões, açougues, consultórios odontológicos, adegas, mercearias. Os pontos comerciais dividem parede com igrejas, prédios da prefeitura, unidades básicas de saúde, ambulatórios, escolas.
Em Paraisópolis, há casas por todos os lados. Olhando para cima existem casas de até quatro andares e onde só se é possível chegar subindo imensas escadas em caracol. Os caminhos levam a becos escuros onde não se enxerga o fim e formam um horizonte laranja de casas com tijolos à mostra e em barracos de madeira próximo ao acesso aos prédios e mansões de luxo do Morumbi.
São mais de 100 mil moradores e 21% deles trabalham ali mesmo, de acordo com a associação. Em 2016, o IBGE concluiu que Paraisópolis tem 45 mil pessoas por quilômetro quadrado. É maior densidade populacional no país.
"O clima nos últimos dias tem sido de tensão", explica Gilson Rodrigues, presidente da União dos Moradores de Paraisópolis. Gilson vagou pelo bairro na companhia de técnicos de saúde da prefeitura e do hospital Albert Einstein, que mantém um centro de atendimento na favela. A iniciativa era analisar quais locais poderiam abrigar doentes. O prédio de uma associação de educação e um campo de futebol society são duas possibilidades.
A outra iniciativa da associação é recrutar 420 voluntários para vigiar mais de 21 mil domicílios e eleger os chamados "presidentes de rua", que ficarão responsável pela comunicação entre lideranças comunitárias, grupos de família e moradores isolados. A ação é em conjunto com o G10 Favela, grupo que reúne representantes das maiores favelas brasileiras.
Para botar o plano em pé, Gilson não dorme direito desde domingo e classifica o esforço como um "esquema de guerra". "Não foi criado um canal de comunicação eficiente. A comunicação [do governo] com a comunidade é: fique em casa, use álcool gel e fique de quarentena, no home office. A favela não tem gel, está faltando água, isolamento em uma casa onde vive 10 pessoas não é real. Que política pública específica vai ser feita pela favela?", diz.
Com exceção de espaços da prefeitura e do governo estadual, como escolas e UBS, não há alertas institucionais sobre o coronavírus no bairro. O governo do estado de São Paulo pretende doar 1.200 caixas d'água a moradores que sequer contam com uma em casa.
Em busca do álcool gel
"Falta chegar ainda um pouco de informação e mais ajuda", diz Nilton Queiroga, há doze anos proprietário de uma rede de farmácia em Paraisópolis. Um aviso no balcão pede para que clientes mantenham distância. "Máscara para meus funcionários, por exemplo, não tem. Estou vendendo álcool gel pelo preço que estou comprando, por R$ 20. Não estou preocupado com prejuízo. É para ajudar a comunidade", diz.
Pela rua passava uma procissão de idosos rumo às unidades de saúde básica no bairro. Nesta segunda (23), o SUS deu início à campanha de vacinação contra a gripe, com início para a terceira idade e profissionais da saúde. A faixa etária faz parte do grupo de risco do coronavírus.
"Eu não saio de casa desde quarta-feira", diz Dominga Souza, 62. "Ela mora com a neta, a filha e o marido e diz que alguns moradores levam a sério o coronavírus, mas outros, ainda não. "Fico no quarto, pois tive tosse no começo do mês. Mas a casa não é muito grande e ninguém aqui vive em casa muito grande."
A dona Rosa Cavalcante da Silva, 49, debruça-se no parapeito de uma espécie de barzinho que instalou na própria casa. Nascida em Pernambuco, está em Paraisópolis há cerca de 35 anos, quando veio para cuidar de crianças. Tornou-se diarista e usou o dinheiro do trabalho para bancar o aluguel de dois cômodos no bairro por cerca de R$ 350. "Graças a Deus é com o que eu vivo e me é garantido por mês", diz.
Rosa tem fibromialgia e o que chama de "pés chatos", o que lhe faz perder o equilíbrio. O tratamento é feito no Hospital das Clínicas, região central de São Paulo. "Não bebo, não fumo, nem cheiro, mas já caí aqui, no terminal Princesa Isabel e lá no Largo da Batata", brinca. No início do mês teve tosse, mas enxerga como livramento do coronavírus que os sintomas tenham parado por aí.
Com água, mas sem sabão
No arrabalde do centro efervescente de Paraisópolis está Telma, 42, que revira caçambas de lixo em busca de comida. Ela afirma que é seu aniversário, mas que de "presente" recebeu a informação sobre fechamento de mercados e restaurantes devido à pandemia do coronavírus.
Telma conta morar em um barraco em Paraisópolis com três filhos pequenos e que a comida da família era lançada no local pelos estabelecimentos. No horário de almoço, porém, não havia encontrado nada para comer, mas apenas um fone de ouvido que pretendia vender.
Para lavar as mãos, Telma usa a torneira de um prédio da prefeitura. O restante dos cuidados com a doença são fruto de uma amostra grátis de álcool gel, que não sabe explicar como conseguiu. "Hoje é meu aniversário e eu estou aqui até conseguir dinheiro para uma marmita. Mas creio que Deus vai me livrar do mal e não vai fazer mal com ninguém", conclui.
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