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Por que Bolsonaro erra ao usar violência doméstica para criticar isolamento

Jair Bolsonaro (sem partido) usa a máscara pendurada na orelha durante coletiva sobre coronavírus - Reprodução/GloboNews
Jair Bolsonaro (sem partido) usa a máscara pendurada na orelha durante coletiva sobre coronavírus Imagem: Reprodução/GloboNews

Camila Brandalise

De Universa

30/03/2020 14h58

"Tem mulher apanhando em casa. Por que isso? Em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão. Como é que acaba com isso? Tem que trabalhar, meu Deus do céu. É crime trabalhar?"

A declaração acima foi dada a jornalistas pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no domingo (29), ao voltar de um passeio por Brasília, motivado pelo recente dado divulgado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que mostra que as denúncias de violência doméstica para o 180 aumentaram 17% desde o início da quarentena.

Especialistas ouvidas por Universa afirmam que os casos de agressões contra mulheres devem aumentar ainda mais com o isolamento, mas afirmam que o motivo disso não é o confinamento nem a falta de emprego ou de dinheiro, como sugere Bolsonaro.

"Fatores externos, como problemas financeiros, podem ser gatilho para explosão de tensões, mas nunca a causa, mais relacionada à desigualdade e o desequilíbrio dos papéis sociais de homens e mulheres", afirma a promotora Silvia Chakian, do Gevid (Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher), do Ministério Público de São Paulo.

Casais com mais renda têm mais incidência de violência doméstica

Cofundadora da Rede Feminista de Juristas, Isabela Guimarães Del Monde explica, com base em dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada) divulgados em 2019, que a incidência de agressões é maior em famílias com maior renda.

"Ao contrário do que o senso comum difunde, o índice de violência contra mulheres economicamente ativas (52,2%) é praticamente o dobro do que o registrado pelas que não compõem o mercado de trabalho. Nesse sentido, em casas em que há mais renda, gerada pelo homem e pela mulher, há mais casos", afirma.

Ela considera "leviano" e "preconceituoso" com as pessoas pobres afirmar que falta de dinheiro causa violência. "A fala do presidente é um desrespeito e naturaliza a violência como algo que necessariamente vai acontecer, e não algo que é inadmissível em qualquer circunstância", diz.

"Bolsonaro, infelizmente, trabalha com base em achismos e não em dados e ciência, e ignora que a violência doméstica assola todas as classe."

Situação financeira não justifica agressão, que é crime

Psicóloga especializada no atendimento de vítimas de violência doméstica há 15 anos, Artenira da Silva e Silva, pós-doutoranda em Direitos Humanos pela UFPA (Universidade Federal do Pará) e pesquisadora do mestrado em Direito da UFMA (Universidade Federal do Maranhão) é taxativa: "De nenhuma forma crise financeira justifica agressões contra a mulher".

"Da mesma forma que uso de álcool e drogas pode potencializar a violência doméstica — e por isso são chamados fatores de risco —, a crise ou qualquer outro tipo de frustração maior num casal, que pode ser perda de um filho, por exemplo, também é", afirma.

"Mas não é causa. A causa da violência contra a mulher é sempre o machismo, introjetado e a ponto de ser acionado", diz a psicóloga, que atualmente tem 28 pacientes, todas de classe alta.

Por que o presidente não pode fazer esse tipo de comentário?

Isabela ainda critica o fato de Bolsonaro se referir à situação de uma mulher apanhando como "briga". "Conflito é parte indissociável de qualquer relação e é justamente o modo como se lida com ele que diferencia uma situação de violência doméstica. Ela existe não porque um discorda do outro, mas porque, diante da discordância, o homem vira um tapa na cara da esposa. Isso não é briga, é crime", afirma.

"O perigo de isso sair da boca dele é que, como um líder nacional, ele influencia diretamente comportamentos. Muitos homens dentro de casa vão se sentir autorizados a bater na esposa porque estão passando por um momento difícil, e isso justificaria a violência", analisa Isabela.

Como explica a promotora Silvia Chakian, a linguagem para abordar o tema precisa ser cuidadosa, para não contribuir com a banalização das agressões, tratando-as como algo corriqueiro, que "simplesmente acontece".

"Estamos falando de um país com números assustadores de violência doméstica e feminicídio, qualquer abordagem que não seja séria e responsável no trato dessa questão é inaceitável", diz.

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, um caso de violência doméstica é registrado a cada dois minutos no país. Em relação a feminicídios, há uma morte a cada sete horas, em média.

E o que explica a violência doméstica?

Silvia afirma que não há uma resposta simples para essa pergunta. "Não há causa isolada, e sim conjugação de fatores. A construção de um comportamento masculino que vê a parceira como objeto de posse é um deles", explica.

Para Isabela, a violência doméstica é parte da educação dada aos homens, desde a infância, que os estimula a lidarem com suas frustrações, inseguranças e tristezas com violência.

"Os homens são o grupo social que mais morre, mais mata e mais se mata. Isso significa que temos a ideia de que ser homem é responder às situações cotidianas violentamente", explica.