Ninguém é "fada sensata", nem Marcela: por que esse termo é equivocado?
Durante a eliminação de Marcela Mc Gowan do BBB 20, nesta terça-feira (7), Tiago Leifert fez um discurso para os participantes sobre parte das mulheres que, segundo ele, tentam manter o perfil de "fada sensata" dentro do jogo. Durante os dias de confinamento, tanto a médica quanto a cantora Manu Gavassi insistiram em se manter no reality como porta-vozes e "réguas morais" de questões — especialmente associadas a empoderamento e feminismo — dividindo o público a respeito dessa postura.
O maior embate se dá por conta de, para o público, as participantes terem um discurso de união feminina, necessidade de se valorizar as mulheres, mas ignorarem o impacto do racismo — especialmente, o estrutural — dentro das relações. Não à toa, nas redes sociais, os acontecimentos do programa viraram tema para discussão sobre até onde o feminismo branco compreende outras opressões. Afinal, dá para manter a ideia de "fada sensata" sem tropeçar nos próprios deslizes?
"Fada sensata": por que termo é perigoso?
Na internet, é comum que, ao elogiar a linha de pensamento e o discurso de uma pessoa, especialmente de mulheres, se use termos como "fada sensata", "cristal sem defeitos", "nunca errou".
Em tom de brincadeira, as expressões definem um comportamento de alguém que fala com bastante propriedade de algum assunto; com pautas identitárias, como de mulheres, negros e pessoas LGBTQs, cada vez mais no centro das discussões, posturas feministas, antirracistas e de respeito a orientações sexuais também se tornam valorizadas.
Para a psicóloga e psicanalista clínica Eliane Rosa de Melo, que estuda raça, gênero, sexualidade e classe e suas intersecções, no entanto, é preciso que se compreenda que não há "fada sensata" — no sentido de ser uma "pessoa perfeita".
"A 'fada sensata' se dá com base em uma personalização do que a pessoa gostaria de ser - e as redes sociais, e até o BBB, servem de espaço para se aplicar essa máscara social", analisa. Para a psicanálise, explica, a identidade do sujeito é construída no conflito entre o que é externo e o que é interno, certo e errado. Eliminar essas contrariedades pode, inclusive, gerar ansiedade na dita fada já que a pessoa tende a se preocupar sempre com que os outros estão pensando dela. "Aí passa a se perguntar se pode errar". Quando, é bom deixar claro, todos somos passíveis de cometer erros.
A criadora de conteúdo digital Carla Lemos, que compartilha no perfil @modices questões de autoestima e de feminismo, pondera que, de fato, existe na internet a transferência de expectativas "a uma mulher-maravilha, a uma pessoa mágica". Um ideal impossível de se concretizar. "Mas quanto mais a gente conhece as pessoas, vê um conteúdo sem filtro, tanto no reality quanto nas redes sociais, vamos identificando falhas. Afinal, ninguém é perfeito".
BBB é oportunidade de discussão
Para a influenciadora digital, todo o debate sobre "ser fada sensata ou não" suscitado pelo comportamento das participantes do BBB também é válido aqui fora, principalmente entre mulheres que se identificam/identificavam com as falas feministas das confinadas.
"Nós estamos redescobrindo o feminismo, já que fomos afastadas de movimentos sociais por um tempo, e a internet acelera bastante isso; ao mesmo tempo, é recente a percepção de que há várias linhas de pensamento dentro dele, que é mais complexo", diz. "Daí se vê que o debate pode ficar sem profundidade. De qualquer forma, penso que o BBB está fazendo as pessoas pensarem sobre a intersecção de questões, a de gênero e a racial".
Eliane reforça que a perspectiva da construção social de raça, neste sentido, é fundamental para que a compreensão de mundo seja, de fato, mais sensata.
"É preciso entender que o mundo é construído racialmente: o branco é o natural e o negro é o outro, que pode ser questionado, visto como 'não-ser'. Não à toa, tivemos a primeira onda do feminismo de mulheres norte-americanas brancas, heterossexuais, cisgêneros, classe média, classe alta que, naquela época, não olharam para as outras formas de ser mulher. Quando, hoje, uma mulher se diz fada sensata e só valida essa forma de feminismo, ela exclui, novamente, todas as outras".
Se ninguém é "fada sensata", quem seguir?
Eliane explica que eleger uma pessoa para seguir, dentro da psicanálise, se dá por dois efeitos: o de manada - já que todo mundo apoia, eu também vou apoiar — e o de pertencimento. "Só que o indivíduo precisa primeiro ter consciência de si, de sua identidade, para saber se seu desejo corresponde ao daquele grupo".
Precisa, então, "cancelar" aquela pessoa que falava coisas com que você concordava e, em algum episódio, falhou? Carla considera que não."Precisamos ter referências de pessoas que têm valores que se aliam aos nossos, mas não dá para perder o senso crítico; daí vem a importância de termos nossa própria análise".
Cientes dos nossos erros, diz Carla, é mais fácil nos aproximar também da humanidade do outro - e, portanto, das suas falhas. "É não cobrar tanto as pessoas. Temos que ter a consciência de que é preciso acolher e que muitos dos debates, trazidos inclusive por programas de TV, novelas, ainda estão em estágio inicial". Na maioria das vezes os erros são grandes oportunidades de crescimento.
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