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Tenho que engolir o choro: médica relata medo e hostilidade diante da Covid

Gabriela Pastana, 26, trabalha na semi-intensiva do Hospital da Vila Alpina (Arquivo pessoal) - Acervo pessoal
Gabriela Pastana, 26, trabalha na semi-intensiva do Hospital da Vila Alpina (Arquivo pessoal) Imagem: Acervo pessoal

Julia Flores

20/04/2020 14h54

"Eu estou cansada" é a primeira frase dita pela médica Gabriela Pastana, 26 anos, na conversa. Ela, que é clínica geral e atende no Hospital Estadual da Vila Alpina, Zona Leste de São Paulo, é mais uma profissional da saúde que sofreu uma mudança drástica na sua rotina de trabalho por causa do avanço do coronavírus.

A médica tinha acabado de voltar de um plantão de 24 horas quando nos atendeu. Ela atua na ala semi-intensiva do hospital reservada a pacientes de Covid-19 e, desde que a pandemia começou, tem encarado rotinas exaustivas de trabalho, atendendo cerca de seis vezes por semana, em plantões que variam de 12 a 24 horas.

"Todos os meus colegas médicos estão muito abalados. Morrendo de medo. Às vezes, só queria estar em casa em paz, sem saber de medicina por uns dias. O médico tem sempre essa carga de ser o líder, de dar a notícia, de lidar com complicações", diz a médica.

A cabeça não para

Pensando nas condições psicológicas de quem está da linha de frente do combate à Covid-19, o Ministério da Saúde liberou uma cartilha de cuidados com a saúde mental de médicos, enfermeiros e outros profissionais da área. Entre as recomendações está reduzir a carga de informações lidar diariamente, o que, para Gabriela, é quase impossível: "Todo dia sai um artigo novo sobre o vírus, uma resolução a qual temos que nos adaptar. Todo dia é discussão de caso, a gente precisa se informar, ou o paciente sofre. A nossa cabeça não para."

A cartilha também orienta "substituir os pensamentos catastróficos por pensamentos realistas". Para Gabriela, que vive em um ambiente de tensão e, além de lidar com a vida de estranhos, também precisa se proteger e cuidar da saúde de colegas, controlar os pensamentos catastróficos é uma tarefa quase tão exaustiva quanto o trabalho em si.

Eu comecei a ficar apavorada depois que levei meu colega de trabalho para a UTI. Pensei: 'caramba, se eu estivesse no lugar dele, quem iria cuidar de mim?'

"Fico morrendo de medo de pegar a doença. Hoje, que já temos todos os equipamentos de proteção individual no hospital, eu me sinto um pouco mais tranquila. Tenho que continuar trabalhando -- se eu parar de trabalhar, paro de receber", desabafa Gabriela, que veio da cidade de Marabá (Pará) para a capital paulista há quatro meses.

Sem a família e amigos por perto, a médica diz que está emocionalmente muito abalada pela pandemia, a ponto de temer uma crise de burnout. Burnout, ou ou Síndrome do Esgotamento Profissional, é um transtorno que acomete 30% dos profissionais ao redor do mundo e nada mais é do que o esgotamento mental após crises de estresse envolvendo o ambiente de trabalho.

"A todo momento, tenho que engolir o choro: ao dizer para um paciente que está consciente que ele terá que ser entubado, ao dar essa notícia para a família. Eles começam a chorar e eu penso de novo 'eu não posso chorar'."

Tem machismo até nisso

Gabriela usa os equipamentos de segurança para se proteger do vírus - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Imagem: Acervo pessoal
Notificar o óbito de alguém a um parente nunca foi tarefa fácil. Mas, agora, essa missão está ainda mais complexa. Uma resolução do Estado de São Paulo publicada no final de março determina que os corpos de casos suspeitos de Covid não podem entrar em contato com terceiros e devem ser enterrados com caixão fechado.

"Toda vez que eu tenho que fazer uma declaração de óbito de Covid eu já fico tensa, torcendo para que a família me entenda, Sei que é uma situação muito dura para os familiares. Mas a primeira pergunta que eles fazem é 'eu posso ver'? E a resposta é: não, não pode. É lei. E quem segura a onda são os médicos", fala Gabriela.

A demora do resultado do exame que confirma a infecção pelo novo coronavírus é outro problema.

Muitas vezes você não tem a confirmação de que é Covid, mas mesmo assim as medidas de segurança impedem que os parentes se despeçam de seu familiar.

"Imagine que eles já estiveram longe durante toda a internação... É bem comum que a família fique agressiva", diz.

Desde que a pandemia começou, os profissionais da saúde têm lidado com preconceito. Mas, segundo Gabriela, agora é preciso lidar, também, com a violência e a hostilidade no ambiente de trabalho. Para as mulheres, a situação é ainda mais difícil. "Me sinto vulnerável. Algumas vezes já precisei do apoio da segurança do hospital. Em geral, eles respeitam mais os colegas homens. Há machismo até nisso."