Inversão: como identificar uma das técnicas mais comuns dos homens abusivos
Gerar dúvidas, sofrimento, dependência e submissão nas parceiras — e, principalmente, manipulá-las para que se sintam culpadas e, assim, distraí-las para que não deem tanto peso aos maus-tratos emocionais e psicológicos que lhes infligem. Essas são algumas das atitudes dos homens abusivos, em especial os narcisistas, psicopatas e egoístas. Trata-se de uma prática conhecida como gaslighting.
De acordo com o psicólogo Marcelo Lábaki Agostinho, do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do IP-USP (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo), os comportamentos humanos são determinados não só pela mente consciente, mas também, por aspectos inconscientes das pessoas. "Talvez o abusador emocional nem se dê conta do que está fazendo", diz ele. "Assim, não afirmaria com todas as letras que o que ele quer gerar seja culpa ou sofrimento — mas o efeito do controle exercido gera, sim, esses sentimentos. Nem sempre o homem abusivo faz isso de maneira predeterminada."
Uma possível explicação é que o abusador deposita na outra pessoa aspectos dele. "Nesse caso, é ele quem depende da parceira, embora não o saiba. E, para continuar vivendo a relação, faz com que ela passe a ser dependente", afirma.
"Seria uma forma de ele não entrar em contato com a própria dependência, que pode estar ligada a experiências emocionais de muito sofrimento ou traumáticas. E nesse ponto que o termo inversão é interessante, pois invertem-se os sentimentos. O que o homem não quer reconhecer como dele, passa a ser da parceira. Ele 'entrega' para ela", completa Marcelo.
Abusador acha que é vítima de pessoas burras
Para a psicóloga clínica Silvia Malamud, terapeuta de casal e família e especialista em abordagem direta a memórias do inconsciente, na inversão o abusador literalmente inverte verdades e fica com as rédeas de uma relação em que, aos poucos, vai se revelando como funciona em termos de controle e punição.
"As manipulações, em geral, são atuações comandadas por processos inconscientes. Por exemplo, mesmo que o abusador tenha consciência de que não pagou uma conta e que a responsabilidade deveria ser dele pelo fato de ter esquecido, ainda assim poderá ficar furioso acusando a mulher por não tê-lo avisado ou de não ter deixado a conta perto de seu campo de visão, criando um clima insuportável até que as verdades sejam totalmente suprimidas", explica.
Se ele faz isso de modo consciente? "Não", diz Silvia. "Ele se percebe como uma vítima de pessoas 'incompetentes', 'burras' e que 'não são boas o suficiente'. Mas por que ele é tão irascível assim? Exatamente por causa do seu mecanismo frenético e inconsciente de inversão", explica a psicóloga.
Ainda de acordo com ela, por causa de um histórico de muito sofrimento e por estratégia de sobrevivência, em algum momento o cérebro do abusador fez uso do mecanismo da dissociação, deixando de entrar em contato com seus aspectos mais nocivos. No entanto, o que fica escondido e ilhado dentro de si ainda está, de algum modo, incomodando.
E, como alívio das tensões, acaba sendo projetado para fora, a ponto de o abusador querer destruir, no outro, aquilo que lhe pertence como significado de dor. "Existe um ódio e um desdém que, em vez de ser direcionado a si mesmo, é invertido de todas as formas e maneiras no outro. O abusador não sente culpa nem remorso, porque o mal está invertido para fora de si e direcionado à parceira", complementa.
Segundo a psicóloga Marina Vasconcellos, terapeuta familiar e de casal pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), o abusador considera suas atitudes normais. "Ele não acha que faz mal para outro nem que tudo aquilo que comete se trata de abuso. Na verdade, só o próprio bem importa", relata.
Marina reforça que o discurso é sempre convincente, charmoso e manipulador. "É como se fosse uma espécie de lavagem cerebral executada diariamente. A parceira é sempre errada, equivocada, injusta, ingrata, irritante... Com o tempo, ela acaba duvidando das próprias ações e assumindo o que o outro diz dela", afirma.
Qualquer mulher está sujeita
Em princípio, há a impressão de que as mulheres com boa autoestima e mais fortes e sensatas, digamos, psiquicamente são menos suscetíveis à inversão, pois "captam" mais rapidamente seus sinais. Na prática, porém, nada disso adianta.
"Após mais de uma década lidando com todo tipo de vítima, desde donas de casa com pouca instrução a promotoras e juízas de direito, posso garantir que qualquer mulher está sujeita aos diversos tipos de violência relacional, em especial, à psicológica", observa a advogada e escritora Lucy Rocha, combatente na luta contra a violência relacional e administradora da página do Facebook "Que Amor é Esse? - Relações Tóxicas"
"Abusadores, via de regra, são pessoas sedutoras, charmosas, disponíveis, encantadoras, dispostas a sacrifícios para fazer com que seus alvos se sintam amados como nunca antes", ela afirma. "Não importa quem você seja, se sentir amado é uma necessidade do ser humano. Esses abusadores são astutos e sabem disso. Estudam com atenção seus alvos até compreender por quais 'rachaduras' emocionais podem entrar e se instalar."
Sob a ótica de Lucy, mulheres um pouco mais maliciosas, que já viveram situações de abuso ou que são bastante inteiradas de como funciona a cabeça de um abusador, podem captar com facilidade uma inversão e, assim, estabelecer limites ou até recuar por completo.
"No entanto, mesmo essas às vezes se enganam inicialmente. Devido à grande habilidade de fazer a 'mímica de pessoa bem-intencionada' que abusadores têm, é preciso estar alerta e, ao primeiro sinal, romper sem maiores explicações", avisa.
"Talvez uma mulher mais forte psiquicamente teria mais condições de se observar melhor e, assim, poder compreender com mais clareza o que está se passando numa relação assim. Mas acho que ninguém está a salvo de entrar numa relação tóxica, ainda mais se considerarmos as sutilezas invisíveis que podem existir nessa situação", endossa Marcelo.
Como romper o ciclo de abuso?
Para Silvia Malamud, para quebrar o padrão, primeiro é necessário entender que o abusador vive num looping sem fim, hipnotizado nessas questões, e que dificilmente irá mudar.
"Quem deve mudar é a vítima. Ou ela se fortalece a ponto de reconhecer o mecanismo do abusador e conquistar o lugar emocional de não se identificar — ou seja, de não se contaminar mais com esse adoecimento —, ou busca fazer uma terapia competente, o que na maioria das vezes é um auxílio fundamental para que resgate de si mesma aconteça", salienta.
Conforme Lucy, quando a mulher tem uma percepção realista sobre ela mesma, consegue rechaçar a inversão e dizer algo como: "Sei que está tentando inverter a situação para tirar o foco daquilo que você fez, mas hoje isso não vai funcionar. Não tente me culpar ou envergonhar porque a questão em discussão é X e não Y".
Ela explica a a estratégia: "É preciso saber que, quando lidamos com gente verbalmente abusiva, é importante 'devolver' as agressões no sentido de não aceitá-las, trazendo-as para o debate. Exemplo: 'Você me acha incapaz? Essa é sua opinião, fique com ela'", diz.
"Nada é mais perturbador para um agressor emocional do que mostrar que ele não foi capaz de ferir você como gostaria. Ele inveja, se ressente e teme essa força demonstrada e, mais cedo ou mais tarde, vai cair fora", diz a ativista.
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