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Mães solo ainda não conseguiram auxílio: "Comida é a 1ª coisa que acaba"

Jessica Beatriz Campos tem uma filha de seis anos: sobrevivendo de doações de alimentos de familiares - Reprodução/Facebook
Jessica Beatriz Campos tem uma filha de seis anos: sobrevivendo de doações de alimentos de familiares Imagem: Reprodução/Facebook

Camila Brandalise

De Universa

23/04/2020 04h00

Jessica Beatriz Campos, de 28 anos, é mãe de uma garota de 6 que não foi registrada pelo pai — assim como outros cerca de 5,5 milhões de crianças brasileiras, de acordo com o CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

Bancando sozinha a criação da filha, a estudante de pedagogia se virava com o salário de estagiária em uma escola. Com o contrato suspenso, se vê agora à beira de uma situação dramática: sem dinheiro, aguardando o auxílio emergencial do governo que ainda não saiu e prestes a ficar sem comida em casa.

Com ajuda de parentes, Jessica conseguiu alguns alimentos para fazer duas refeições por dia, às 12h e às 19h. Mesmo assim, vai dormir com fome. "É o jeito", diz.

Como Jessica, outras milhares de mães solo no país, ou "arrimos de família", aguardam a verba do governo — nesse caso, R$ 1.200, o dobro dos R$ 600 concedidos em outras situações —, para poder sobreviver.

Universa conversou com 11 mulheres na mesma situação: todas viviam de trabalhos informais antes da quarentena e perderam suas fontes de renda, não têm como procurar vagas (já que os estabelecimentos comerciais estão fechado), não ganham pensão — ou porque o filho não foi reconhecido ou porque o pai não paga — e contam os dias para receberem o dinheiro do auxílio.

Muitas conseguiram a aprovação do benefício, como Carla Wilhemsen, 27 anos, que perdeu a única fonte de renda durante a pandemia e passa pela mesma situação. "A geladeira está começando a ficar vazia", diz a mãe solo de uma adolescente de 15 anos. Porém, ela ainda não sabe nem quando nem quanto irá receber. "Total desespero, principalmente porque não tem ninguém contratando."

"Mães choram dizendo que salvamos sua vida", diz criadora de campanha

Thais Ferreira, do Rio de Janeiro, é uma das idealizadoras do projeto Segura a Curva das Mães, que pretende ajudar mães solo em todo o país durante a pandemia do novo coronavírus. Antes de começar as arrecadações, a campanha fez um abrangente mapeamento para saber quem são essas mulheres e do que elas mais precisam. A campanha foi criada em parceria com Thaiz Leão, do Instituto Casa Mãe.

Cada mãe que pedia ajuda à campanha tinha que preencher um formulário. De 28 de março a 2 de abril, 732 mulheres responderam às perguntas da pesquisa e os dados foram tabulados. Cerca de 60% são pretas ou pardas; 43% têm entre 25 e 34 anos; 32% têm renda mensal de R$ 100 por integrante da família; 32% têm um filho e 30,6%, mais de três filhos.

"Além disso, 69% não contam com nenhuma ajuda de fora", diz Thais. Ela explica ainda que os dois pontos mais críticos levantados foram dificuldade para comprar comida e produtos de higiene. Problemas com pagamento de aluguel também aparecem em várias situações. Ela cita a mãe que tinha acabado de lhe enviar uma mensagem pedindo ajuda, pois não tinha R$ 300 para pagar o aluguel e seria despejada do apartamento de um cômodo em que vive com os seis filhos.

A campanha criou uma vaquinha online para arrecadar R$ 115 mil e repassar R$ 150 para cada participante. Entre elas, 160 já tiveram algum tipo de auxílio e, agora, outras 95 receberão a quantia. A fila começa com as mães de maior vulnerabilidade, com mais filhos e menos renda.

Thais conta que, mesmo ao repassar uma quantia que claramente é um valor muito baixo para sustentar uma família, recebe mensagens emocionadas de agradecimentos das mulheres que ajuda. "Elas mandam áudio chorando dizendo: 'Vocês salvaram minha vida', mandam fotos do que compraram, como se estivessem prestando contas", diz.

Lugar de subcidadãs

"Percebo que elas ocupam o lugar de subcidadãs, de subalternidade, de quem não existe mesmo, não merecem nada", comenta Thais. "É aceitar ser medida pela régua da desgraça. O que a gente faz ainda é muito pouco, mas tem sido recompensador. Recebemos muitas mensagens de bênção. Pedem que Deus nos dê em dobro. OK, mas vamos doar tudo", brinca.

Ativista pelos direitos das mães, Thais comenta que o abandono e a solidão em relação às que cuidam dos filhos sozinhas as faz acreditar que esse o papel que devem ocupar é o da obrigação solitária. "Sabe isso de 'toma que o filho é teu'? É muito cruel. Porque aí as políticas públicas acabam não enxergando as mães solo, hoje o público mais atravessado pela negligência do Estado."

"Coronavírus joga luz na desigualdade", diz fundador do DataFavela

Há duas semanas, um estudo do Instituto Locomotiva e do DataFavela mostrava que as mães das favelas brasileiras — 25% delas solo — não teriam como comprar comida depois de um mês sem renda. Na época das entrevistas para a pesquisa, 34% já estavam passando fome. "Não tenho dúvida de que esse número aumentou", afirma Renato Meirelles, presidente do instituto e fundador do DataFavela.

Segundo Meirelles, a crise deve perdurar mesmo após o fim da quarentena. "Por causa da baixa escolaridade e por contarem menos com o aparato do Estado", explica. "É importante que o Congresso tenha aumentado [o auxílio] de R$ 600 para R$ 1.200 para elas, mas é um processo que deve continuar passando pela distribuição de renda. O coronavírus não criou a desigualdade, só jogou luz nela."

Soma-se a esses fatores, diz, o estigma que existe relacionado à mulher que cria os filhos sozinha. "E não estou falando de mães da Vila Madalena e Leblon [bairros nobres de São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente], que vêm de família rica, mas de mulheres cuja maternidade já é fruto da vulnerabilidade social, que pararam de estudar quando engravidaram na adolescência e tiveram menos acesso às oportunidades."

Maioria continua "em análise"

Das 11 mulheres entrevistadas por Universa, a maioria relatou ter o status do pedido "em análise" mesmo tendo se inscrito já quando o projeto de auxílio começou. Algumas tiveram o pedido deferido e só estavam aguardando, e a uma foi indeferido.

Segundo a advogada Deise Martins, integrante da Rede Feminista de Juristas e mestranda em direito do trabalho e seguridade social pela USP (Universidade de São Paulo), o alto número de pessoas em análise se deve, principalmente, à quantidade de pessoas que requisitaram a ajuda financeira -- as aprovações chegaram a 45,2 milhões. "Então, mesmo que não seja o cenário ideal, é possível que esses dados estejam ainda sendo analisados por causa dessa fila", afirma. "Isso mostra bem a precariedade da vida população brasileira."

"Governantes deveriam olhar mais pelos nossos filhos"

O fato de muitas mulheres atingidas pela quarentena serem aquelas com trabalhos informais já foi motivo de atenção da ONU Mulheres, em um relatório sobre os impactos da pandemia na população feminina.

Com contratos trabalhistas frágeis, vivendo de bicos, como diaristas, passadoras, profissionais de salões de beleza, elas agora se veem em um beco sem saída. Sheilla Oliveira, 29, mora na cidade de Cristalina, em Goiás, e diz estar sem qualquer fonte de renda no momento — ela trabalha como faxineira e manicure. Também aguarda o auxílio do governo que, já aprovado, ainda não tem data para ser pago.

"Não sei o que vou fazer se tudo isso demorar mais. Os governantes deveriam olhar mais não pela gente, mas pelos nossos filhos que são pequenos demais para entender as coisas. É muito doloroso ver um filho pedir algo e você não poder fazer nada", diz a mãe de uma menina de dois anos.

A faxineira Maria Claudia Fusetto, 43, comemora ter conseguido negociar o aluguel. Mãe de dois filhos, uma de 7 e outra de 19, diz que teme ficar na rua e ter que procurar outro lugar para morar em meio à quarentena. "Mas meu maior medo é meus filhos pegarem a doença e morrerem", diz ela, que já enfrentou uma crise de pânico nesse período.

Ela deve receber na sexta-feira (24) o auxílio, mas conta que não consegue verificar o valor. "Se for R$ 600, já não vai dar, porque só de aluguel devo R$ 800." Com o dinheiro que vai entrar, vai "testar um plano B" e começar a fazer nhoque para vender.