Vida em risco e sem visitas: como Covid-19 afeta rotina das mulheres presas
"De todos os tormentos do cárcere, o abandono é o que mais aflige as detentas." A frase é do livro "Prisioneiras", escrito por Drauzio Varella, médico voluntário na Penitenciária Feminina da Capital. É essa solidão retratada na obra que enfrentam várias das cerca de 37 mil presas no Brasil — e que, agora com a pandemia de Covid-19, é agravada com a suspensão das visitas.
A mãe e a irmã de Janaína (nome fictício) estão na Penitenciária Feminina de Santana, na zona norte de São Paulo. As duas foram presas em situações semelhantes, durante batidas policiais na casa de suspeitos de terem participação em esquemas de tráfico de drogas. Desde então, elas buscam provar sua inocência em relação aos crimes.
Antes de a Justiça proibir, em 20 de março, as visitas nos presídios paulistas, Janaína costumava vê-las quinzenalmente e sempre levava o "jumbo", pacote com produtos de higiene pessoal e alimentos. Desde dia 25 de março, devido à pandemia, a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) determinou que a entrega dos pacotes poderia ser feita apenas por correspondência.
"Depois dessa situação do coronavírus, já tem mais de duas semanas que não tenho notícias delas. Minha irmã teve apendicite e precisou operar, só sei que ela está bem porque falei com uma moça que saiu da cadeia por esses dias", explica Janaína.
Ela também aponta a dificuldade financeira que está enfrentando para poder auxiliar as familiares. "Estou desempregada e não tenho como mandar o jumbo pelo correio porque é um gasto muito alto."
Janaína explica que só conseguiu enviar as correspondências porque recebeu ajuda e doações da campanha "Vidas Carcerárias Importam". A mãe dela tem pressão alta e sua irmã é mãe de quatro crianças. Os casos foram enviados à Defensoria Pública e Janaína aguarda uma resposta do órgão para que elas possam cumprir a pena em casa durante a pandemia do coronavírus.
Dados mostram que mulheres presas costumam ter menos visitas do que homens na mesma situação. De acordo com o Relatório Temático Sobre Mulheres Privadas de Liberdade, feito pelo Departamento Penitenciário Nacional, detentos de estabelecimentos masculinos receberam, no primeiro semestre de 2017, em média 4,55 visitas cada um. Nas unidades femininas, a média é menor, de 4,45 visitas por presa. Já nas unidades mistas, o índice cai para 2,63 por custodiada.
A impossibilidade de se proteger de um vírus no cárcere
"Não há como seguir as recomendações mínimas da Organização Mundial da Saúde (OMS) de isolamento social e higiene dentro do cárcere. É um lugar em que faltam produtos como álcool, sabonete e até água. A alimentação também é muito precarizada. Se você não se alimentar bem, como vai ter imunidade boa pra passar por uma pandemia?"
Este é o depoimento de Camila Felizardo, 28, que foi presa aos 18 anos por tráfico de drogas e assim permaneceu por quase 4 anos. Hoje, graduanda em Serviço Social, criou com a socióloga Rosângela Teixeira e com a artista Daniela Machado o coletivo Mulheres que (R)Existem, que compra e arrecada itens de higiene pessoal para detentas.
"Eu me considero uma abolicionista penal. Ao contrário do que as pessoas pensam, grande parte da população presa não é formada por pessoas perigosas. A realidade é que a massa carcerária é de pretos, pobres e periféricos que foram excluídos pela sociedade e que sempre sofreram com a desigualdade social", aponta Camila.
Assim como ela, a dançarina Barbara Querino, 22, conhece bem a realidade carcerária. Em 2018, ela foi acusada de ter participado de dois assaltos à mão armada. Ficou um ano e oito meses presa e há sete meses cumpre a pena em regime aberto.
A sentença de Barbara foi dada com base no depoimento de vítimas que dizem tê-la reconhecido pelo cabelo. Ela, no entanto, afirma ter provas de que estava em outra cidade no dia de um dos assaltos. Bárbara já foi inocentada em um dos processos. Hoje, aguarda a resolução do outro caso, parado desde outubro de 2019.
Ela sempre destaca o caráter racista de sua condenação. Em entrevista, fala sobre as dificuldades que enfrentou. "Assim que cheguei no sistema carcerário, recebi quatro rolos de papel higiênico, dois sabonetes, uma escova de dente e um creme dental. A gente nem sempre recebia esses produtos, vinham a cada três ou quatro meses, por isso o jumbo é tão importante."
"Além disso, cheguei a ficar em uma cela que tinham cerca de 25 mulheres, mas que deveria ter apenas 12. Em cada cama dormiam duas meninas, mas quando cheguei não tinha lugar. Dormi no chão por quase dois meses", conta.
Foi por causa dessa realidade precária e cruel que, ao lado da psicóloga Tati Nefertari, ela criou a campanha "Vidas Carcerárias Importam". Elas estão arrecadando alimentos e produtos básicos para a prevenção do coronavírus para serem doados à população carcerária.
Políticas de desencarceramento em meio à pandemia
A recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicada em 17 de março, sugere várias medidas para a prevenção da propagação do coronavírus, entre elas a reavaliação de prisões provisórias. A publicação leva em conta principalmente os detentos que se enquadram no grupo de risco da doença, os responsáveis por crianças de até 12 anos, aqueles que se encontram em estabelecimentos penais lotados e os que foram acusados de cometer crimes mais brandos.
A advogada Marianna Haug, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, cuidou do caso de Elisa (nome fictício), detenta que em março último conseguiu a progressão do regime fechado para o aberto. Ela é responsável por uma criança de 1 ano de idade e tem bronquite asmática, condição que a coloca no grupo de risco da Covid-19.
Além de ser um espaço que naturalmente pode comprometer a saúde das pessoas, o cárcere também enfrenta a falta de médicos. De acordo com dados de junho de 2019 do Infopen, sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro, apenas 756 clínicos gerais atuam no sistema prisional brasileiro.
Marianna pontua a importância dos magistrados seguirem as recomendações propostas pelo CNJ. "Neste contexto de epidemia de um vírus que se propaga no ar e em que temos a recomendação de nos mantermos isolados, políticas de desencarceramento são emergenciais para tentarmos evitar um massacre no sistema prisional", afirma.
Quer ajudar?
Veja aqui como ajudar as instituições que trabalham com mulheres no sistema penitenciário.
Vidas Carcerárias Importam. Pontos de arrecadação: Biblioteca Comunitária Assata Shakur, rua Chaberá, 190, Vila Formosa, zona leste; Bloco do Beco, rua Bento Barroso Pereira, 2, Jardim Ibirapuera, zona sul. Doações em dinheiro: Caixa Econômica Federal, agência 4557, operação 013 (poupança), conta 00009609-3, Bárbara Querino Oliveira, CPF 467.401.758-02.
Mulheres que (R)Existem. Doações em dinheiro: Banco do Brasil, agência 6806, conta 13.242-x, Associação dos Artistas e Produtores do Centro de São Paulo, CNPJ 32.877.709/0001-66. Vinte por cento do valor arrecadado será destinado para a campanha "Vidas Carcerárias Importam.
Ação da Amparar com a Uneafro Brasil. A Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos) e a Uneafro Brasil estão coletando cestas básicas e itens de higiene para doarem a famílias de detentos. As doações podem ser feitas na sede da Amparar, rua Eugênio Albani, 150, sala F, Cohab 2, Itaquera, São Paulo. Doações para a Uneafro podem ser feitas por vaquinha online aqui.
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