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"Não quero mais mentir": STF decidirá se gays podem doar sangue em pandemia

Por ser gay, Paulo não consegue doar sangue - Arquivo
Por ser gay, Paulo não consegue doar sangue Imagem: Arquivo

Marcos Candido

De Universa

27/04/2020 04h00

Paulo Damasceno, 32, tomou uma medida que considera extrema para salvar a vida do pai de uma amiga. Em 2017, ele mentiu para doar sangue em um hospital de Belo Horizonte.

O gestor comercial é gay, mas estava dentro dos requisitos do Ministério da Saúde. Há um ano não mantinha relações sexuais, após o término de um relacionamento. Mas, sabendo que poderia ser impedido de doar ao paciente internado e como o caso era urgente, decidiu não arriscar. Cinco anos antes, já tinha sido impedido de fazer a doação. "Foi a pior sensação possível", lembra.

Com a pandemia do novo coronavírus, a coleta do sangue de homens gays permanece proibida no país. Mas, nos próximos dias, há uma possibilidade de Paulo finalmente receber liberação para ajudar os hospitais do país. O Supremo Tribunal Federal (STF) deve analisar em maio uma ação que pode permitir que homens que tiveram relações com outros homens doem sangue sem restrições.

Se aprovada, a medida permitirá que Paulo possa ajudar internados durante a pandemia, quando, devido ao isolamento, o estoque é reduzido. "Não quero ter que mentir de novo durante a pandemia. Isso seria negar a mim mesmo. Ou aceitam meu sangue como eu sou, ou eu não doo", diz.

Como funciona hoje

Atualmente, o Ministério da Saúde exige um ano sem relações sexuais para que homossexuais possam doar sangue. Há relatos, porém, de que homens gays ou bissexuais não são aceitos nos bancos de sangue mesmo cumprindo aos requisitos.

A queda da restrição em todo o país depende apenas do voto do ministro Gilmar Mendes. A ação, proposta em 2016, foi votada favoravelmente no ano seguinte pelo relator, ministro Edson Fachin, e seguido pelos ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux. O ministro Alexandre de Moraes votou como parcialmente procedente.

A portaria do Ministério da Saúde coloca o grupo com as mesmas restrições de quem sofreu um estupro, tem vício em drogas ou é portador de ISTs.

A ONG All Out estima que até 19 milhões de litros de sangue são desperdiçados todo ano com a restrição a homens gays e bissexuais no Brasil. O número leva em consideração as quatro doações permitidas por ano com 10,5 milhões de homens bis e gays, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Já de acordo com a "Equal Blood" ("Sangue igual"), uma das autoras da ação no Supremo, a portaria do Ministério da Saúde desconsidera casais de homens gay monogâmicos e que usam preservativo. Também vê como inconstitucional e discriminatória a restrição. A organização europeia tem atuação mundial, já que as restrições também acontecem em outros países.

Nos Estados Unidos, onde a pandemia do novo coronavírus já matou mais de 50 mil pessoas, o governo afrouxou a regra para permitir esse tipo de doação e exigiu intervalo apenas de três meses desde a última relação sexual de entre homens.

Por aqui, parlamentares lançaram vídeos nas redes sociais em apoio à aprovação da ação no Supremo.

Um dos autores da ação no Supremo, o psicólogo Eliseu Neto, que articula a pauta com ministros e parlamentares, tem esperança que o tribunal derrube a restrição.

"[A ação] é um avanço histórico. É o fim de um discurso preconceituoso pautado na ideia de grupo de risco para comportamento de risco. Doação de sangue é um ato de humanidade, direito de todas as pessoas", diz.

Queda nos bancos de sangue

Em Minas Gerais, estado onde Paulo mora, a Fundação Hemoninas enfrentou uma queda de 40% na doação de sangue em março. Nesta semana, o banco de sangue da instituição estava em estado de alerta para alguns tipos sanguíneos. O estado tem 51 mortes pelo novo coronavírus e mais de 1.300 casos confirmados.

No Hemocentro da Unicamp, em Campinas, no interior de São Paulo, a queda foi de 25% em abril. No estado, há mais de 16 mil casos confirmados.

A queda na coleta de sangue nos estados onde a circulação de pessoas diminuiu fez o Ministério da Saúde e as próprias instituições reforçarem as campanhas de doação. No Brasil, há 32 hemocentros e 500 equipamentos de hemoterapia de acordo com a instituição.

O que diz o ministério

O Ministério da Saúde diz que segue indicação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para impedir a doação de sangue por homens gays e bissexuais. O veto usa como base a possibilidade de relações homossexuais entre homens terem uma maior probabilidade de transmissão do vírus HIV.

É o chamado "grupo de risco", conceito adotado quando a Aids se espalhou rapidamente pelo mundo entre os fins da década de 80 e começo dos anos 90. O termo "grupo de risco" tem sido contestado ao longo dos últimos anos e, hoje, médicos como Drauzio Varella adotam o chamado "comportamento de risco". Ou seja: qualquer um pode ser infectado pelo vírus HIV em um relacionamento sexual sem preservativo, não só homens gays.