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Mãe e cientista, ela venceu preconceito e é referência em estudo do cérebro

A cientista Pâmela Carpes, mãe e pesquisadora de fisiologia humana - Arquivo Pessoal
A cientista Pâmela Carpes, mãe e pesquisadora de fisiologia humana Imagem: Arquivo Pessoal

Marcelo Testoni

Colaboração para Universa

29/04/2020 04h00

A pandemia de Covid-19 trouxe à tona no Brasil dois aspectos relacionados à ciência. Um deles é que apenas por meio dela vamos conseguir superar o novo coronavírus. Outro, é o descaso com o qual ela vem sendo tratada recentemente.

"Ao mesmo tempo em que esta pandemia tem feito todos ouvirem falar em decisões baseadas em evidências científicas, na importância da ciência e do estudo cuidadoso dos eventos para a tomada de decisões, temos cortes de bolsas, escassez de editais de financiamento à pesquisa, dificuldades para compra e importação de reagentes etc", afirma Pâmela Billig Mello Carpes, de 36 anos, pesquisadora de fisiologia humana da Unipampa (Universidade Federal do Pampa), no Rio Grande do Sul.

Pâmela, que já passou por maus bocados tentando exercer sua profissão, sabe do que fala. Além da falta de incentivo financeiro, ela é mulher e mãe, dois fatores que dificultaram ainda mais sua jornada. Até que um cientista deu a ela uma oportunidade. E não era um sujeito qualquer — era Iván Izquierdo, o neurocientista mais pop do país.

Carreira ameaçada pelo preconceito

Pâmela Carpes no laboratório - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Pâmela faz parte de grupo que propõe ações para ampliar a participação das mulheres na ciência
Imagem: Arquivo Pessoal

Há 15 anos, Pâmela quase teve seu sonho de cursar mestrado interrompido quando professores demonstraram insatisfação com sua aplicação. O motivo? Por mais afinidade e dedicação que pudesse demonstrar pela carreira científica, ela havia se tornado mãe.

"No momento em que engravidei, já no final da minha graduação, as pessoas, incluindo meus professores, passaram a imaginar que meus planos seriam interrompidos. Cheguei a acreditar nisso, mas achava injusto ter que abandonar algo que já havia entendido que era uma paixão: a ciência", explica. "Por outro lado, embora não tivesse planejado ter um filho naquele momento, eu tinha certeza de que queria tê-lo e já o amava."

Mesmo sabendo que não seria fácil, ela decidiu que não teria que fazer uma escolha entre a maternidade e a ciência. "Mas recebi algumas negativas, e os professores me disseram que não poderiam me disponibilizar uma vaga. Nunca ninguém me disse que era por eu ter um filho, mas aceitavam orientar quem não os tivesse. Hoje, conhecendo a academia e o mundo da ciência, sei que isso é um fator importante."

Exemplo de resistência e dedicação

Depois de muitas tentativas, Pâmela encontrou um professor que não relacionou o fato de ela ter um bebê com seu comprometimento e sua proposta de fazer pesquisa. Era Iván Izquierdo, "o neurocientista brasileiro mais citado e reconhecido fora do Brasil", segundo Miguel Nicolelis, neurobiólogo da Universidade de Duke, nos Estados Unidos.

"Ele estava interessado nas minhas habilidades e em como elas poderiam agregar ao seu grupo de pesquisa naquele momento. Foi assim que comecei a trabalhar e entrei para a área de neurobiologia da memória, na qual atuo até hoje", recorda.

"Dentro da fisiologia humana, sempre me encantei pelos mistérios do cérebro e o sistema nervoso. Assim, quando fui buscar um tema de pesquisa, foi natural escolher algo relacionado à neurociência", conta Pâmela.

Concluído o mestrado, ela engatou um doutorado e, na sequência, um pós-doutorado pela Universidade de Leuven, na Bélgica. Hoje, além de professora universitária, é bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e consultora da Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) para assuntos relacionados à neurociência aplicada à educação.

Não é só: Pâmela atua ainda na causa das mulheres na ciência, como membro do comitê feminino da Sociedade Americana de Fisiologia, e lidera ações e participa de grupos de pesquisa para a divulgação e popularização da neurociência.

Reconhecimento da Unesco

Pâmela na premiação - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
No palco, durante evento da Unesco em que foi premiada
Imagem: Arquivo Pessoal

Em 2017, Pâmela ganhou o prêmio internacional e conjunto L'Oréal-Unesco-ABC (Academia Brasileira de Ciências) "Para Mulheres na Ciência". A iniciativa ocorre anualmente e contempla com uma bolsa auxílio de R$ 50 mil jovens doutoras brasileiras responsáveis por projetos científicos de alto mérito a serem desenvolvidos durante 12 meses em instituições nacionais.

"Ganhei o prêmio com um projeto que busca entender melhor como o cuidado, ou a falta dele, nos primeiros anos de vida impacta o cérebro e o desenvolvimento das suas funções. Nos dias de hoje, cada vez mais as crianças ficam afastadas dos pais por longos períodos logo nos primeiros meses de vida, durante, por exemplo, o período em que eles trabalham", conta.

"Em seres humanos, traumas fortes, abuso sexual e agressões físicas durante a infância são as principais causas de aumento do estresse e consequente surgimento de processos de desordem mental na vida adulta, um dos grandes problemas de saúde pública da atualidade."

Desafios de mães e mulheres cientistas

Com a visibilidade decorrente do prêmio, Pâmela também aproveitou a oportunidade para discutir ainda mais questões como a equidade de gênero e a maternidade dentro do campo da ciência.

Ela explica que a relação entre esses temas até pouco tempo quase não era discutida no meio acadêmico — e que no Brasil começou a ganhar mais visibilidade graças à mobilização e aos projetos liderados por pais pesquisadores que vivenciam essa realidade.

O grupo Parent in Science, do qual faz parte, é um deles. Ele busca reunir informações sobre o impacto que os filhos têm na carreira científica e propor ações para ampliar a participação das mulheres na ciência.

"Uma das nossas lutas recentes é pela consideração da licença-maternidade na avaliação do currículo das cientistas. É importante entender que uma cientista que também é mãe pode ter tido uma queda nas suas produções científicas devido à maternidade, e não por incompetência ou algo do tipo", afirma.

"Precisamos ainda discutir as razões de termos menos mulheres nas áreas 'mais duras' da ciência, como física, engenharia, tecnologias, em posições de destaque e com visibilidade e divulgação de pesquisas", conta.

"Os desafios são enormes e os preconceitos, muito velados. Ninguém diz que uma mãe não pode ser cientista. Mas também não há quem considere a maternidade na hora de se fazer exigências ou comparações."